Bullying

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É melhor ouvir certas asneiras que ser surdo

One Shot Laís para Caren

O primeiro dia de aula não é um ambiente muito agradável para ninguém. Especialmente quando se tem seis anos e é literalmente o seu primeiro dia de aula da vida toda. Filha de pais conservadores, nunca frequentei nenhuma creche ou pré-escola, pois minha mãe se dedicou inteiramente à minha criação e do meu irmão mais velho.

Minha mãe me acompanhou até a sala de aula, deixando-me com minha enorme mochila cheia de materiais, aos cuidados de uma professora linda e sorridente.

– Seja bem-vinda, Cecília – sorriu, o que me fez sentir menos deslocada. Então ela abriu minha mochila e conferiu o material rapidamente e continuou – Sua carteira é aquela ali.

Ela apontou para uma das carteiras que ficavam em círculo em volta da mesa dela. Sentindo minhas bochechas queimares, segui de cabeça, mas meu pé enroscou em uma das cadeiras e caí no meio da sala, derrubando meu material – já que a mochila ficara aberta – e fazendo o maior estardalhaço com cadeiras caídas e eu, estatelada no chão.

Ouvi um coro de risadas de todos os alunos que estavam na sala. Não eram muitos alunos, mas o suficiente para me fazer querer sumir daquele lugar. Era a primeira vez que eu me sentia tão deslocada e tão envergonhada.

– O que é esse negócio na orelha dela? - perguntou uma das meninas, que usava maria-chiquinha.

– Bem que eu ouvi dizer que esse ano um robô estudaria com a gente – riu uma outra, que usava óculos fundo de garrafa.
Não me lembro bem quando meus pais descobriram minha deficiência, mas desde que eu me lembro das coisas, uso aparelho auditivo para poder escutar. Sem ele, ouço apenas ruídos e as pessoas precisam gritar para que eu as compreenda.

Era a primeira vez que alguém ria de mim por usar o aparelho, mas neste momento me senti o ser mais estranho do planeta. Literalmente me senti um robô. E para diminuir a estranheza, tive a brilhante ideia de tirar o aparelho para tentar parecer normal. Enquanto a professora deu a primeira atividade – que era de pintar – tudo correu bem. E comecei a cogitar a possibilidade de que não precisava daquilo, pois eu conseguia compreender o que a professora queria.

Depois que ela recolheu as atividades, ela falou alguma coisa que eu não entendi e algumas crianças levantaram e fizeram uma fila na porta. Para não ser taxada de esquisita novamente, levantei-me e entrei na fila, mas então percebi que todos riam de mim, novamente. Olhei, sem entender o motivo da chacota, quando finalmente me dei conta que só haviam meninos na fila. Discretamente coloquei o aparelho novamente, apenas para ouvir a professora dando uma bronca na turma por rirem de mim. Discretamente sequei a lágrima que insistiu em cair e voltei para a minha carteira.

Na hora do recreio, tranquei-me dentro do banheiro e comi o lanche que a minha mãe mandara ali dentro. O mau cheiro era incômodo, mas menos do que as risadas incessantes daquelas crianças.

Assim que o sinal tocou, voltei correndo para a sala. Queria ser a primeira a entrar na sala e, desta forma, evitar mais zombarias dos outros alunos. Fui bem sucedida na minha tentativa e corri para a minha carteira, onde sentei e abaixei a cabeça, esperando pela professora.

Assim que ela entrou, fechou a porta e esperou que os alunos fizessem silêncio.
– Cecília, venha até aqui na frente – pediu.

Minhas bochechas pegavam fogo, enquanto segui a passos rápidos até a frente da sala.

– Eu achei que não fosse necessário conversarmos sobre isso, mas vamos lá – disse, no seu tom de voz mais maternal. – A Cecília nasceu com uma deficiência auditiva grave.

– O que é isso? – indagou um dos meninos, erguendo a mão.

– Isso quer dizer que ela tem dificuldade para escutar.

As crianças se entreolharam desconfiadas.
– Eu quero que vocês coloquem as mãos sobre os ouvidos e tampem com bastante força.

Sem entender direito, as crianças obedeceram.
– Vocês conseguem ouvir o que eu falo?

– Bem baixinho – respondeu a menina de óculos fundo de garrafa.

– É assim que a Cecília ouve o tempo todo quando está sem o aparelho auditivo dela – explicou pacientemente.

Aos poucos as crianças foram se aproximando de mim, dessa vez demostrando muito mais curiosidade do que hostilidade.

– Eu posso ver esse seu aparelho? - indagou a menina de óculos fundo de garrafa.

– Só se você me deixar ver seu óculos – ri.
Ela me entregou seus óculos e eu entreguei meu aparelho auditivo. Tentei colocar seus óculos e não enxerguei nada além de borrões com ele. Será que era desse jeito que ela enxergava as coisas?
Senti um chacoalhão no meu ombro e notei que a menina conversava comigo.

– O quê? - perguntei.
Ela devolveu o aparelho e eu devolvi seu óculos. Devidamente equipadas, voltamos a olhar uma para a outra.

– Meu nome é Fernanda e essa é a Sofia – sorriu.
Depois de alguns minutos de interação e respondendo várias perguntas – inclusive se eu era ou não um robô – a professora deu continuidade a aula.

Neste dia eu aprendi duas lições valiosas. A primeira é que nunca devemos ter vergonha de quem somos. E a segunda é que as amizades podem começar da maneira mais inusitada possível, pois acreditem se quiser, a Fernanda foi e é até hoje a minha melhor amiga.

Amigo Oculto LiterárioOnde histórias criam vida. Descubra agora