MAPINGUARY

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De Igor para Júlio

Mapinguary

“ Não é sinal de saúde estar bem ajustado a uma sociedade profundamente doente. ”

Manchete 1: Marido mata esposa depois de tê-la encontrado na cama com o amante.

Manchete 2: Mulher mata próprio filho de tanto espanca-lo.

Manchete 3: É descoberto um cadáver enterrado no quintal da casa de um casal.

Manchete 4: Pai atira a própria filha de 5 anos da janela do 13º andar do prédio onde moravam.

- Nossa, só de ler as notícias no jornal ou assistir noticiários já bate uma depressão, é uma notícia pior que a outra, onde esse mundo vai parar?

- Olha João, já faz algum tempo que parei de assistir ou ler os noticiários, só serve para despertar todo tipo de sentimento ruim dentro de mim. O pior é quando fui ficando dormente a todas essas tragédias, aí o “sinal vermelho” apitou. A inércia é o princípio do fim.

- Eu não posso para de assistir as notícias, não dá para ficar alienada né Joanna.

- Entre ficar alienada e sentir o mal despertando dentro de mim de forma silenciosa, prefiro a alienação. Obviamente que esta é apenas uma das ferramentas que a sociedade onde vivemos utiliza para nos controlar mentalmente, os artifícios são infindáveis.

Gostaria de ouvir uma história que meu avô me contava quando eu e meus irmãos éramos crianças?

- Claro, eu adoro as suas histórias.
“ Era uma vez...

Era a década de 40 no ano 1740.
Em uma aldeia situada próxima a uma floresta, um lugar lindo, com uma terra fértil, o povo desta aldeia respirava prosperidade e bondade. Era um povo pacífico e trabalhador, todos se ajudavam mutuamente, usavam a permuta como forma de pagamento para seus alimentos, roupas e serviços no geral. Os homens cuidavam dos serviços braçais que exigiam força física, as esposas cuidavam do lar e dos filhos. Os filhos eram treinados no ofício da família. A paz reinava naquele lugar. Violência e discórdia era algo improvável, nenhum habitante daquele lugar lúdico, alimentava uma mente doentia, movida pelo egocentrismo e a ganância.

Tinham uma vida que hoje é o desejo da maioria das pessoas, viviam com suas famílias e amigos, tinham tudo que precisavam, estavam em total harmonia com a natureza, com as pessoas ao seu redor e com eles mesmos.
Mas havia uma lenda que assombrava este povo pacifico.

Dizia a lenda que:

Cada vez que trocava de década aparecia na floresta um animal horrendo, com mais de dois metros de altura, muito fedorento, seu fedor tinha o poder de atordoar suas vítimas, ele era muito peludo, sua pelagem servia de escudo para a sua proteção, tinha apenas um olho no centro de sua cabeça e sua boca era imensa, ia do peito até seu estômago na posição vertical, como todo monstro, este também era carnívoro.

Rezava a lenda que este monstro na verdade um dia havia sido um homem como qualquer outro, um homem que há mais de 5 séculos foi amaldiçoado. Era conhecido por ser de uma péssima índole, tendo praticado inúmeras maldades. Ao ser amaldiçoado, foi tomado por um forte arrependimento, mas era tarde demais.

Ele não era apenas um monstro que queria se alimentar, havia um motivo muito forte para a sua aparição. Quando a aldeia entrava em desequilíbrio, quando algum dos habitantes começava a cultivar o mal em seu coração, quando começava a surgir o sentimento de pura crueldade, que sabemos ser um sentimento inato dos seres humanos. Então isto servia como um chamariz para este monstro medonho. Os sábios da aldeia o chamavam de Mapinguary, que significava: monstro da penitência, sua aparição era necessária para restaurar a harmonia daquele lugar.

Já havia se passado um século e nenhuma tragédia tinha acometido a aldeia. Tudo parecia estar em perfeita ordem, mas não é necessário um grande acontecimento para mudar a inclinação de um coração bom.
Havia um jovem rapaz, muito exemplar por sinal, ajudava seu pai nos afazeres, estava aprendendo o ofício de ferreiro, era um trabalho árduo e cansativo, porém muito digno, eles eram os únicos ferreiros da aldeia, o trabalho deles era realmente necessário, sempre havia interessados em permutar algo com eles.

Mas como com todos os jovens ocorre uma fase um tanto conflitante, com este não foi diferente. Ele começou a menosprezar o trabalho de seu pai, até passou a trata-lo com muita indiferença. Claro que não havia mal algum em este rapaz querer novos horizontes para si, se aventurar quem sabe, o problema não era este, o próprio pai passou a notar a inclinação para o mal no filho, tentava conversar com ele, oferecia ajuda, mas o rapaz não estava interessado no que o pai tinha a lhe dizer.

Ele começou a fazer planos em que almejava se colocar em uma posição que pudesse ter muito poder, ele queria implementar ali na aldeia um sistema de “capitadura”.

- O que é capitadura Joanna?

- É um termo que ele mesmo criou, uma mistura de capitalismo com ditadura.

Continuando...

As más atitudes, a índole duvidosa, a soberba, egocentrismo e ganância do rapaz, chamou a atenção dos sábios da aldeia e eles convocaram uma reunião de urgência para encontrar uma maneira de fazer o jovem mudar suas atitudes.

Entre estes sábios a lenda do Mapinguary, não era só uma lenda, era uma história cheia de verdades -  como eles não queriam instaurar o terror na aldeia, mas principalmente eles não queriam que os habitantes sentissem que ter um bom coração era uma obrigação e sim que fizessem isso de livre vontade - eles transformaram a história em lenda.

Eles resolveram conversar com o jovem e lhes expuseram toda a verdade, o rapaz riu na cara deles, lhes chamou de velhos antiquados e loucos e que faria o que bem quisesse.

De repente começou os prenúncios da “profecia”, começou a chover como nunca havia acontecido antes na história dos habitantes daquela época, destruiu muitas casas, as plantações foram devastadas e um frio não só climático, mas também de espirito, tomou conta de todos.

Era lua nova, o mal tempo já havia se instaurado, estava acontecendo exatamente como à algumas eras, não havia mais como conter a grande força e justiça que vem da natureza.

O rapaz com toda sua impetuosidade saiu durante a noite buscando algo que não o entediasse tanto, resolveu que a tempestade não o faria parar com seus planos, visto que a aldeia toda estava no salão de festividades reunidos tentando descobrir uma forma para colocar em ordem tudo o que havia sido destruído, ele percebeu que a ocasião era oportuna para invadir a relojoaria e roubar o que havia de valor lá dentro.

No caminho, com todos os obstáculos que encontrou para chegar no seu destino, a história que os sábios lhes contaram começou a voltar a sua mente, falou para ele próprio que o mau tempo era algo comum de tempos em tempos. 

No seu trajeto ele viu um vulto, continuou andando, mas já com a sensação de que alguém o observava, antes que pudesse invadir o estabelecimento, um monstro enorme e assustador apareceu na sua frente, ele tentou fugir, pedir ajuda e não havia ninguém para lhe socorrer.

Estando frente a frente com o destino que ele mesmo criou, deu-se conta de que não tinha como mudar a trajetória de sua vida, o verdadeiro monstro estava dentro de seu ser e também estava fora, estava em toda parte, como o próprio Mapinguary, percebeu que era tarde para se arrepender. ”

- Essas histórias que ouvimos quando crianças nos trazem muito aprendizado, meu avô contava esse tipo de história para nós, para percebermos a importância de manter um bom caráter e respeito com as pessoas, ficávamos maravilhados, nem sempre percebíamos a verdadeira intenção por trás, mas com certeza serviu de alicerce para criar um bom caráter. Não quero permitir que o nosso cotidiano condicionado vá matando aos poucos o que demorei tanto para construir.

- Obrigada Joanna, vou refletir no rumo que estou dando a minha vida, não quero despertar o monstro que há em mim.

Amigo Oculto LiterárioOnde histórias criam vida. Descubra agora