Capítulo 83: Ursa

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Sara empertigou-se no assento do carro, já desconfortável por estar ali há tanto tempo sentada. Mas o desconforto era mínimo perto do efeito que aquele momento a proporcionava. Seu rosto doía de tanto sorrir. Diferente do sorriso usual, irônico e provocativo, aquele era genuíno.

A menina corria pelo playground, perseguida por duas amiguinhas da mesma faixa etária, sete anos. A fragilidade daquela criaturinha contrastava com sua beleza; madeixas loiras bem vivas à luz do sol, tão radiantes quanto seu sorriso angelical. Para Devassa aqueles instantes eram sublimes, davam à sua vida algum significado.

A garotinha foi alcançada pelas duas. Riram, sentando-se na grama.

Sara suspirou fundo e acendeu um cigarro. Sentiu o celular vibrar no bolso. Era o aparelho reservado para o Clube. Com certeza seria alguma notificação do aplicativo ou mensagem de algum dos membros ou dos Bastidores. No banco do passageiro, um pacote de ração para gatos e vasilhas de comida e água para a gata preta que manteria em sua casa até o fim da punição de Nayuri. O Clube e a gata iriam esperar. Todos iriam esperar.

As meninas agora brincavam em um escorregador. Devassa mantinha os olhos na loirinha, mas também na babá que conversava com uma mulher com roupa de ginástica. A displicência da babá irritava-a profundamente.

Fica de olho na menina, sua cadela!

Dois meninos se aproximaram do escorregador. Eram maiores que as meninas, mas deviam talvez oito ou nove. Sara jogou o cigarro fora, olhos fixos na cena, como uma águia atenta. Viu que as meninas não sorriam para os meninos, o que indicava que não eram amigos, nem eram bem-vindos. Diziam algo a elas, e seus semblantes variavam entre sério e debochado. Devassa estava tão tensa que apertou com força o estofado, os olhos fuzilando a irresponsável babá que estava de costas para as crianças, entretida na conversa.

As meninas se afastaram do brinquedo, que agora estava sob o comando dos dois moleques. As três com semblante triste, derrotado. Ver o sorriso de sua pequena se esvair fez com que o ódio ardesse na garganta de Sara. Mas manteve-se onde estava, sabia das regras. A babá nem mesmo percebeu a movimentação.

O trio de garotinhas começou a brincar em uma gangorra, revezando os assentos. Aos poucos os sorrisos foram se reacendendo. Sara ficou mais tranquila, permitiu-se relaxar, mas o gosto amargo do ódio não saía com facilidade. Acendeu outro cigarro.

Ficou tensa novamente. Os meninos apontavam para as meninas, como se combinando algo. Andaram até elas, de peitos estufados. Ficou claro que reivindicavam seu novo brinquedo.

A loirinha desta vez não cedeu.

Sara viu-a, com a respiração presa, enfrentar os garotos. Não ouvia o que diziam, mas conseguia imaginar.

O mais alto dos dois empurrou a garotinha loira, que caiu sentada no chão.

Devassa saltou para fora do carro, atravessando a rua cega de fúria, correndo sem olhar para os lados, com um único objetivo em mente: matar o garoto estrangulado. O menino virou-se tarde demais; o tapa de Sara estalou em seu rosto e o fez girar antes de cair no chão. Devassa debruçou-se sobre ele, empurrando seu rosto contra a areia, rosnando em seu ouvido:

— Se tocar a mãozinha imunda nela de novo, eu juro que arranco suas entranhas com os dentes!

— Tia Sara!

A voz assustada a fez despertar para a realidade: estava em um local público batendo em uma criança. Pessoas se aproximavam, horrorizadas. Um homem gordo corria em direção a ela, desesperado.

— Maluca! Larga meu filho! Polícia!

Sara se levantou em um salto. Estava transtornada, encurralada. Mais pessoas a cercavam. O homem apanhou o menino nos braços enquanto gritava com ela. Ouvia gritos de revolta, o choro do garoto, mas o único som que interessava era o da garotinha com cabelos da mesma cor dos dela:

— Corre, tia. Corre!

Sara cobriu o rosto, algumas pessoas já sacando os celulares para filmar a cena. Ouviu a menina. Correu, mas em direção à babá que se aproximava de olhos arregalados.

— Samantha! — gritou chamando a loirinha.

Ao se aproximarem o suficiente, Sara a empurrou, fazendo-a cair de costas no chão. Sara berrou:

— Deixe isso acontecer de novo e juro por deus que nunca mais vai enxergar na sua vida insignificante!

Então, a passos largos, afastou-se em direção ao seu veículo, mas sem correr. Mantinha o queixo erguido, a pose de predadora. Que tudo mais fosse para o inferno! Ninguém machucaria sua Samantha e sairia vivo, mesmo que para isso tivesse que ir ao inferno, ou criar um.

Entrou no carro, cantando pneus. Estava frustrada. Queria olhar para trás, se despedir de Samantha. Abraçá-la, protegê-la, dizer ao seu ouvido:

Não tenha medo. Ninguém vai te machucar, filha.


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Filha?

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