Capítulo 90: Desenho

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Onze anos atrás

A sorveteria que ficava no centro da cidade era ponto obrigatório de Sara e suas amigas na saída da escola, ao anoitecer. Ficava em uma praça histórica, do lado oposto da catedral que era ponto turístico da região. Era um cenário comum em cidades mineiras pequenas como aquela.

— Meu sonho é ir pro Rio — disse Luana, uma das três amigas de Sara sentadas com ela à mesa.

— Eu prefiro São Paulo — disse Sara tomando em seguida uma colherada de seu Petit gateau, seu preferido.

— Você vai pra Itália, querida — lembrou-a Jeniffer. — E eu morro de inveja de você.

— Eu não vou pra Itália, você sabe muito bem. Pelo menos não com o propósito que meu pai quer. Quero ganhar o mundo, viajar o mundo todo, como uma celebridade.

— Eu não duvido — concordou Helena. — Você tem todo um porte de Diva.

— Você nasceu pra ser artista — confirmou Luana.

— Só não tenho talento nenhum — lamentou a loira.

— Você canta bem — lembrou-a Jeniffer.

— Como vou saber? Neste fim de mundo qualquer coisa que eu faça é aplaudida. Sempre acho que é por seu uma Cobaltini. Se não fossem por meus pais, pelo meu sobrenome, eu seria só mais uma.

— Para de besteira, Sara — protestou Helena. — Você é de longe a garota mais linda da cidade, e olha que tem muitas, como todas nessa mesa — fez um sinal circular com o dedo, rindo.

— Verdade, Sara. Você se destaca.

Sara sorriu, mas não era modéstia. Tinha plena consciência de que era linda, além de ter um corpo espetacular. E achava-se demais para aquela cidadezinha, por mais que não gostasse de externar tal pensamento para não parecer prepotente. O problema era que sua beleza não era um mérito seu, pra variar. Sara queria viver intensamente sua própria vida.

— Ei, meus pais vão viajar hoje — disse Helena entusiasmada. Baixou a voz, como se guardasse um segredo. — O que acham de dormir lá hoje? A gente compra uma garrafa de vinho.

O convite não fora endereçado a Sara; elas sabiam que aquele tipo de programa era impossível para ela. Seus pais nunca a haviam permitido sair para festas tarde da noite, muito menos dormir fora. Enquanto as outras duas se empolgavam com a ideia, ela silenciosamente misturava o bolo quente com o sorvete, levando-o à boca. Escondia a frustração de ser presa, de não ter o poder de ao menos negar um convite como aquele. A sensação de não poder tomar as próprias escolhas era horrível.

— Boa noite! — disse uma voz masculina suave.

Nem Sara nem as amigas havia visto o jovem que se aproximara com uma mochila nas costas, um violão pendido pelo ombro e nas mãos, uma prancheta com papéis e um lápis.

— Boa noite — responderam.

Era um pouco mais velho que elas, talvez maior de idade. Era bonito, com um cavanhaque aberto e ralo de cor castanha como seus cabelos cobertos por uma touca de lã. Vestia-se com estilo alternativo que caía bem em seu corpo esguio. Era forasteiro, com certeza. Nunca o haviam visto antes.

— Se incomodam se eu desenhar uma de vocês? — perguntou sorrindo.

— Não, obrigado — Sara disse automaticamente. Por mais que tivesse achado o recém-chegado bonito e simpático, era o tipo que sua mãe lhe aconselhava a manter distância.

— Eu aceito — disse Jeniffer jogando o cabelo para o lado, cruzando as pernas. Era a mais atirada das quatro, apesar de ser a única que tinha namorado.

— Só um minuto — ele começou a rabiscar o papel.

Jeniffer conservava a pose enquanto Helena e Luana se entreolhavam ou analisavam o rapaz. Sara mantinha o semblante sério olhando para o Petit gateau.

— Você não é daqui, é? — perguntou Luana.

— Não, não. Cheguei hoje de manhã. Estou a caminho de São Paulo, na verdade. Juntando dinheiro por onde passo com minha arte pra pagar hospedagem, passagens e o que mais precisar. Vim de carona até aqui.

— Então é um nômade — concluiu Luana.

— Um cigano — disse Jeniffer.

— Um sonhador — ele falou com o mesmo sorriso sereno e simpático.

— E sua arte consiste em desenhar pessoas em sorveterias? — indagou Helena.

— Sorveterias, bares, restaurantes, praças, calçadas...

— E esse violão? É cantor? — Jeniffer falou sem mudar muito de posição.

— Minha arte é abrangente — piscou para ela.

— Desenhista e músico, Sara — Helena provocou. — E ainda mais indo pra São Paulo. Vai trocar a Itália pra viver da arte como nosso amigo aqui?

Sara deu um meio sorriso, quase desdém.

— Eu pretendo ser bem sucedida.

— Eu também — ele rebateu, impassível, a mão hábil manuseando o lápis. — Muito rico e famoso.

Sara foi a única das quatro amigas que não riu. Eram risadas de deboche, sabia. Imaginou que se não fosse pela família que tinha, a reação delas seria a mesma quando ela falasse dos sonhos, como há poucos minutos atrás. Sentiu compaixão por ele.

— Se for bom no que faz, não vejo por que não. E deve mesmo acreditar que é já que está viajando sozinho, conseguindo dinheiro pelo caminho.

— Sou muito bom no que faço — escreveu algo na folha e a destacou da prancheta. — Se puderem me dar uma força, vou tocar hoje à noite aqui na praça a partir das nove. E eu toco melhor que desenho — entregou a folha para Jeniffer.

Jeniffer recebeu a folha sorrindo, mas o sorriso congelou ao ver o desenho. Helena e Luana, que estavam mais próximas, inclinaram-se para olhar.

— Este é por minha conta. Vejo vocês mais tarde — ele fez um cumprimento com a cabeça, afastando-se da mesa.

Sara estava curiosa, especialmente porque os olhares das amigas estavam focalizados nela.

— Acho que o desenho não é pra mim — Jeniffer entregou a folha para Sara. Sorria, mas era com inveja contida.

Sara pegou e olhou o desenho, arregalando os olhos, genuinamente surpresa. Era seu rosto sério e com os olhos para baixo, tal como estava olhando para o Petit gateau, desenhado com traços simples, mas delicados e expressivos. Embaixo da obra de arte, uma mensagem:

Só pra garantir que verei você de novo.

E a assinatura estilizada, Leandro E.

— Estão vendo isso no rosto dela? — Helena apontou.

— É um sorriso bobo — respondeu Luana. — O hippie gatinho balançou a princesa Cobaltini.

— Deve usar esse truque com todas — Sara recompôs-se. — Eu estava propensa a ir ver ele tocar, mas não vou alimentar o ego dele.

— Nem que você quisesse — lembrou-a Jeniffer. — Seus pais não iam deixar.

Ficou olhando para o desenho enquanto terminava o Petit gateau.

Decidiu-se.


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