Capítulo 130: Palavras

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Paula acordou aos poucos percebendo que estava sozinha na cama, embrulhada com um edredom de pelúcia, completamente nua. Olhou ao redor, procurando por Iguana. Espreguiçou-se no colchão extremamente confortável e macio, desejando ficar ali para sempre. O recinto estava levemente iluminado apenas por luzes embutidas nas paredes, dando um tom amarelado e confortável ao cômodo. Feiticeira levantou-se, andando pelo piso de madeira, apreciando a decoração e requinte daquela suíte.

Eu poderia acordar assim todos os dias.

Checou o celular sobre o criado-mudo. No aplicativo C havia sete notificações. Nem ao menos clicou para ver detalhes, apenas colocou o aparelho de volta no lugar e vestiu-se apenas com calcinha e sutiã, abrindo a porta do quarto e andando pelo corredor até a sala, de onde pôde ver que além de ter anoitecido, Iguana preparava uma mesa na varanda para os dois.

— Ficou tarde — ela constatou enquanto examinava curiosa a mesa. — Que horas são?

— Esqueça o tempo, Scarlet — ele sorriu acendendo uma vela. Vestia-se com uma bermuda e uma camisa confortável, perdendo o ar de gângster que as outras roupas o conferiam.

A mesa tinha decoração rústica, com talheres posicionados, velas ornamentais brancas e um jarro com rosas cujo vermelho cortava o tom amadeirado dos outros elementos.

— Está frio aqui fora — ele andou até ela e a beijou no rosto, passando direto para dentro da residência. Voltou segundos depois com um robe vermelho, prontamente ajudando-a a vestir.

— Por que tem um robe vermelho feminino? — ela indagou com sorriso provocativo.

— Estava preparado para você — ele piscou.

Cafajeste. Quantas não deve ter trazido aqui?

Paula foi pega de surpresa com seus próprios pensamentos. Sentiu-se subitamente idiota por sentir algo ao menos parecido com ciúmes. Sentou-se à mesa enquanto Iguana mais uma vez desaparecia dentro da chácara, voltando logo depois com uma garrafa de vinho e duas taças.

— É agora que você me propõe em casamento? — ela sorriu cruzando as pernas, pegando a taça que ele acabara de encher.

— Não zombe do meu romantismo. Prefiro a moda antiga. Todas as mulheres preferem.

— Não eu.

Ele riu. Os dois brindaram antes de beber.

— Não se rende a um jantar à luz de velas?

— Eu me rendo a orgasmos, charme e inteligência. Mas admito isso dá um tempero a mais à sua elegância.

— Agradeço a sinceridade.

Paula olhava-o nos olhos incessantemente, tentando decifrá-lo. Ficou tentando associá-lo a algum personagem da ficção. Seu charme incansável era como uma ferramenta para causar uma boa impressão initerruptamente. Ele seduzia e por vezes amedrontava com o mesmo olhar. Era como um irresistível vampiro sedento por sangue. E algo a perturbava mais do que qualquer coisa. Ele disse meu nome. Ele sabe? Isso tudo é uma encenação antes de minha morte?

— Ainda não me disse a história do seu codinome — ela lembrou.

Ele riu.

— Iguanas macho têm dois pênis. Achei que seria uma boa referência.

— Você só me apresentou a um deles. Quero conhecer o outro imediatamente!

Os dois riram.

— Claro que não é por isso. Certa vez visitei negociantes no México. Uma transação importante.

— De cavalos? — ela arqueou uma sobrancelha, com certo sarcasmo.

— Drogas.

Paula engoliu em seco. Claro que ele fora negociar com algum cartel, mas ele estava verbalizando, deixando claro que era um traficante. Até ali sua periculosidade estava apenas implícita. Por que estava revelando a ela?

— Nada mais cliché que um cartel do México — ela disse sorrindo, mas tentando encobrir todo o nervosismo que se apossara dela.

— Fico grato que não tenha fingido surpresa — ele disse tomando mais um gole de vinho.

Por quê? Porque você já sabe que eu sei? Você sabe de tudo desde o começo? Ai, meu Deus, por que disse isso? Iria se irritar se eu mentisse? Merda, Paula, merda!

— Você é a caricatura clássica do gângster sedutor — Paula torcia para que ele não percebesse nenhuma mudança de coloração em sua face ou suor escorrendo pela testa com um frio daqueles. — Não esperaria menos. Mas, continuando...

— Bem, eu sofri uma emboscada. Mataram meus homens e, por capricho e sadismo, me abandonaram no deserto. Sem água e no sol escaldante, eu logo estava caído à beira de morte. Até que à noite uma iguana chegou bem próxima ao meu rosto. Eu a agarrei e mordi sua barriga, arrancando um pedaço. Você tem noção do quanto é duro o couro de um lagarto desses? Deixei o sangue escorrer em minha boca. Comi da carne, me reergui. Andei quilômetros carregando a carcaça do animal. Finalmente encontrei uma estrada, e alguém que me desse carona. Invadi a casa do chefe do cartel assim que me recuperei. Matei-o estrangulado com a calda do iguana. Quando os homens dele chegaram, não atiraram em mim. Mexicanos são supersticiosos. Eu contei aos gritos como chegara até ali. Eles odiavam o antigo líder e eu virei o chefe deles. Eles começaram a me chamar de Iguana. Espalharam minha história. Foi quando meu império começou a ser realmente construído.

Paula estava estática, com a taça de vinho congelada no ar.

— Isso é verdade? — balbuciou. — Você comeu um iguana vivo?

— Palavras têm poder. Foi o que eu disse a eles, foi em parte o que eles viram, foi o que espalharam. Se é verdade ou não, apenas eu vou saber. Você influencia pessoas com suas palavras. Você pode levar alguém a se matar por suas palavras. Já leu O sofrimento do jovem Werther?

— Não. Mas entendi a ideia — Paula estava desconfortável. Um pressentimento ruim começando a aflorar.

— O único problema das palavras é que elas não são reais — ele continuou, incomodando Paula cada vez mais. — Nada que eu ou você dissermos vai ter importância alguma, pois são apenas palavras.

— E a confiança não se alicerça com palavras? — ela o interrompeu, tentando disfarçar o nervosismo. Sua mente começava a relembrá-la que aquele homem maravilhoso e utópico era um criminoso.

Iguana deu um sorriso indecifrável e bebeu um gole de seu vinho.

— Só os estúpidos alicerçam sua confiança em palavras. Promessas, juras, mentiras, são a mesma coisa, têm a mesma matéria prima. Palavras manipulam as massas tanto na política quanto na religião, e nas relações pessoais moldam relacionamentos, amizades, vidas. Jamais confie em alguém baseado no que ouviu dela. Use as palavras como uma arma, mas não para cometer suicídio.

— Por que está me dizendo isso? — Paula balbuciou esforçando-se de forma inumana para não transparecer como se sentia.

Paula ouviu o som de motores de veículos. Iguana também percebeu, mas não comentou nada.

— Hoje à noite vou dar a você a mais preciosa das lições.

O sorriso era o mesmo, mas o olhar havia mudado completamente. De sedutor a sombrio, ameaçador. Feiticeira sentiu vontade de levantar e correr, mas seria uma atitude inútil e patética. Quando os faróis dos dois carros iluminou a varanda da chácara, Paula soube que teria duas opções: entrar em pânico ou manter sua personagem. Tomou sua decisão.

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