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— Também me parece que sim – disse o Comissário. – É pena! É um bom militar, no
meu entender. Sobretudo quando eu não participo numa operação e, assim, as suas boas ideias
não podem vir ajudar o meu prestígio. Quando eu estou, ele comete erros só para me
contradizer. Não porque eu tenha sempre razão, mas às vezes também tenho...
O Comandante deu-lhe uma palmada no ombro.
— Tens de te habituar aos homens e não aos ideais. O cargo de Comissário é espinhoso,
por isso mesmo. O curioso é que vocês, na vossa tribo, até esquecem que são da mesma tribo,
quando há luta pelo posto.
— O que não quer dizer que não há tribalismo, infelizmente. Aliás, não me venhas dizer
que com os kikongos não se passa o mesmo.
— Eu sou kikongo? Tu és kimbundo? Achas mesmo que sim?
— Nós, não. Nós pertencemos à minoria que já esqueceu de que lado nasce o Sol na sua
aldeia. Ou que a confunde com outras aldeias que conheceu. Mas a maioria, Comandante, a
maioria?
— É o teu trabalho: mostrar tantas aldeias aos camaradas que eles se perderão se, um
dia, voltarem à sua. A essa arte de desorientação se chama formação política!
E foram tomar o matete.
Eu, O Narrador, Sou Teoria.
Os meus conhecimentos levaram-me a ser nomeado professor da Base. Ao mesmo
tempo, sou instrutor político, ajudando o Comissário. A minha vida na Base é preenchida pelas
aulas e pelas guardas. Por vezes, raramente, uma ação. Desde que estamos no interior, a
atividade é maior. Não atividade de guerra, mas de patrulha e reconhecimento. Ofereço-me
sempre para as missões, mesmo contra a opinião do Comando: poderia recusar? Imediatamente
se lembrariam de que não sou igual aos outros.
Uma vez quis evitar ir em reconhecimento: tivera um pressentimento trágico. Havia tão
poucos na Base que o meu silêncio seria logo notado. Ofereci-me. É a alienação total.
Os outros podem esquivar-se, podem argumentar quando são escolhidos. Como o
poderei fazer, eu que trago em mim o pecado original do pai-branco?
Lutamos não estava de acordo com a proposta do chefe de grupo Verdade. Mal o
Comandante surgiu, Lutamos disse:
— Camarada Comandante, o camarada Verdade acha que devíamos apanhar os
trabalhadores da exploração e fuzilá-los, porque trabalham para os colonialistas. Diz que é isso
o que se decidiu fazer.
O Comandante sentou-se e meteu a colher na tampa da gamela, sem responder. O
Comissário encostou-se a uma árvore, comendo, observando o grupo.
— Deixa lá, pá! – disse Muatiânvua. – Esses trabalhadores são cabindas, é por isso que
te chateias. Mas são mesmo traidores, nem que fossem lundas ou kimbundos..

mayombe (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora