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Nos Dembos, os homens viviam miseráveis no meio da riqueza. O café estava em toda
a parte, abraçado às árvores. Mas roubavam-nos nos preços, o suor era pago por uns tostões
sem valor. E as roças dos colonos cresciam, cresciam, atirando as nossas pequenas lavras para
as terras mais pobres.
Por isso houve Março de 61.
Eu era criança, mas participei nos ataques às roças dos colonos. Avançava com pedras,
no meio de homens com catanas e alguns, raros, com canhangulos. Não podíamos olhar para
trás: os kimbundos diziam que, se o fizéssemos, morreríamos. As balas dos brancos eram água,
diziam eles. Depois da independência renasceriam os que tinham caído em combate. Tudo
mentira. Hoje vejo que era tudo mentira.
Massacrámos os colonos, destruímos as roças, mesmo o dinheiro queimámos,
proclamámos território livre. Éramos livres. Os brancos durante séculos massacraram-nos,
porque não massacrá-los? Mas uma guerra não se faz só com ódio e o exército colonial
recuperou o território, o território livre voltou a ser território ocupado.
Vim para o Congo e no MPLA aprendi a fazer a guerra, uma guerra com organização.
Também aprendi a ler. Aprendi sobretudo que o que fizemos em 61, cortando cabeças de
brancos, mestiços, assimilados e umbundus, era talvez justo nesse momento. Mas hoje não
pode servir de orgulho para ninguém. Era uma necessidade histórica, como diz o Comissário
Político. Percebo o sentido das palavras, ele tem razão, nisso ele tem razão.
Só não tem razão em estar do lado do Comandante, que é kikongo. Foram os kikongos
que vieram mobilizar-nos, que trouxeram as palavras de ordem do Congo de avançar à toa, sem
organização. Os kikongos queriam reconstituir o antigo reino do Congo. Mas esqueceram que
os Dembos e Nambuangongo sempre foram independentes do Congo. Pelo menos, a partir
duma certa altura. Isso disseram-me os velhos dos Dembos e isso diz a história do MPLA.
Porquê o Reino do Congo e não o Ndongo e não os Dembos?
Perdida a guerra de 62, os kikongos infiltraram-se no MPLA. O Sem Medo não. Ele é
kikongo, mas nasceu em Luanda. O Sem Medo é um intelectual, é isso que complica as coisas.
Ele não dorme.
Não pode dormir. A sua Base está ocupada pelo inimigo. Foi ele que a construiu, foi ele
que a impôs ao André, que a queria no exterior. É a sua Base. Por isso sofre. É uma derrota
para ele. Sem Medo é um intelectual, o intelectual não pode suportar que o seu filho morra.
Nós estamos habituados. Os nossos filhos morreram sob as bombas, sob a metralha, sob o
chicote do capataz. Estamos habituados a ver os nossos filhos morrer. Ele não. A Base era o
seu filho, criou-a contra todos. Contra nós mesmos, que queremos é voltar aos Dembos e a
Nambuangongo, onde há verdadeiramente guerra popular. Ele acredita que a luta aqui é
possível, que ela pode crescer. É o seu filho, está bem, é preciso compreender.
O Comissário diz que, se avançarmos a luta em Cabinda, as outras regiões estarão
aliviadas, porque o inimigo terá de dividir forças. É verdade. Por isso, luto aqui. Mas não por

mayombe (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora