negligentemente sobre o ombro, o chapéu cubano escondendo o risco da bala na pele da testa
(daquela vez que fora surpreendido pelo inimigo no rio, quando tomava banho; tivera de fingir
estar morto, o que era confirmado pelo sangue que lhe corria da testa e tingia a água do rio;
quando os camaradas reagiram, ele pôde esconder-se entre as pedras e voltar à Base, nu; fora
castigado pelo Comando, por Henda, pois o cantil e o cinturão foram recuperados pelo
inimigo; não a arma, que os companheiros tinham trazido). Depois de uma hora de marcha,
Sem Medo mandou parar.
— Vamos pescar, temos de poupar comida.
A maior parte das provisões eram conservas (corned-beef, sardinhas, um pouco de leite), o
resto era arroz e xikuanga.
Lutamos trazia sempre anzóis e linha. Ele e Mundo Novo encavalitaram-se numa pedra,
enquanto os outros se espalhavam em grupos pelo Lombe, lavando-se ou conversando. Sem
Medo gostava destas pausas numa marcha, em que filosofava consigo, contemplando as
árvores, ou em que auscultava a maneira de ser dos companheiros. Vendo Teoria isolado,
esfregando o joelho, o Comandante aproximou-se e sentou-se a seu lado.
— Está a doer?
— Ligeiramente. Está a melhorar.
Sem Medo acendeu um cigarro, um dos últimos que lhe restavam. Fechou os olhos, para
melhor saborear a baforada.
— Quando era miúdo, antes de ir estudar para o Seminário, aconteceu-me um caso.
Devia ter uns oito anos. Meti-me com um mais velho e o gajo surrou-me mal. Fugi de medo.
Abandonei o combate. Durante dias, senti-me um tipo nojento, um covarde, um fraco, sentia
que um miúdo qualquer me bateria e eu fugiria...
Calou-se um momento, observando o professor: Teoria ouvia, o ar impenetrável. Sem
Medo continuou:
— Decidi então que, para ter respeito por mim mesmo, só havia uma coisa a fazer:
procurar a desforra. Provoquei o outro novamente, não imaginas o medo que eu tinha, sabia
que ia levar uma surra, não tinha a mínima possibilidade. O outro era muito mais forte e
treinado nas lutas do muceque. Defendi-me como pude, mais do medo que ele me inspirava
que propriamente dos murros que recebia. Afinal não doía tanto assim. Sangrava do nariz, foi
daí que fiquei com o nariz ligeiramente torto, como podes ver. Afinal não doía. Foi o outro que
parou, cansado de bater. Eu iria até ao fim, morreria se fosse necessário, mas não me rendia.
Ele acabou por dizer: ganhaste, desisto. Depois disso ficámos amigos... A partir daí compreendi
que não são os golpes sofridos que doem, é o sentimento da derrota ou de que se foi covarde.
Nunca mais fui capaz de fugir. Sempre quis ver até onde era capaz de dominar o medo.
— Porque me falas nisso? – perguntou Teoria.
Havia qualquer coisa que ele queria descobrir em Teoria, qualquer coisa que lhe
escapava. Respondeu com nova pergunta:
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mayombe (Completo)
RomanceA história do livro tem como cenário Angola nos anos 70, período que marca as lutas pela independência do país. No primeiro capítulo intitulado "A Missão", os guerrilheiros no Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) chegam à selva de Mayomb...