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Sem Medo sorriu.
— Tens razão, as palavras são relativas. Ele é demasiado rígido na sua concepção da
disciplina, não vê as condições existentes, quer aplicar o esquema tal qual o aprendeu. A isso eu
chamo dogmático, penso que é a verdadeira acepção da palavra. A sua verdade é absoluta e
toda feita, recusa-se a pô-la em dúvida, mesmo que fosse para a discutir e a reforçar em seguida,
com os dados da prática. Como os católicos que recusam pôr em dúvida a existência de Deus,
porque isso poderia perturbá-los.
— E tu, Sem Medo? As tuas ideias não são absolutas?
— Todo o homem tende para isso, sobretudo se teve uma educação religiosa. Muitas
vezes tenho de fazer um esforço para evitar de engolir como verdade universal qualquer
constatação particular. Uma pessoa está habituada a não discutir, a não pôr em questão uma
série de ensinamentos que lhe vieram da infância. É preciso uma atenção constante para não
cair na facilidade, não atirar com um rótulo para a frente e assim fugir a uma análise profunda
do fato. Porque o esquematismo, o rotulismo, são o resultado duma preguiça intelectual.
Preguiça intelectual ou falta de cultura. Mas é a primeira que é grave. Claro que também é uma
covardia.
— Sabes uma coisa, Sem Medo? És um intelectual.
— Somos.
— Não o digo no sentido pejorativo. És de fato um intelectual. E eu penso que é bom
que os haja. Talvez tenhas uma atitude demasiado crítica, estás sem dúvida marcado pela
Região, pelos fracassos, pelos erros. Nas outras Regiões não é assim. Se fores para uma outra
Região, então modificarás um pouco a tua atitude, verás que as coisas não são tão más,
ganharás mais perspectivas. Penso aliás que não falta muito tempo.
— Vou ser transferido?
— Pensa-se nisso. Mas fica entre nós, por enquanto. Agrada-te a ideia?
Sem Medo permaneceu calado por instantes. Contemplou a rua, os raros transeuntes
que se aventuravam ao Sol, olhou o responsável.
— Agrada-me, sem dúvida. Estou farto de resolver problemas de fraldas. Eu gosto de
fazer a guerra e aqui não há guerra. E é cansativo lutar-se sem povo. Por outro lado, devo dizer-
te que gosto desta Região e que ela tem possibilidades. A culpa é nossa, não temos sabido
aproveitá-las. Mas, se me dessem a escolher, preferiria ir para outra Região. Sobretudo se fosse
uma Região nova.
— Abrir uma nova Frente?
— Sim. A serra da Chela, por exemplo. Ou o Huambo.
— É o espírito de pioneiro que fala! Isso não será um complexo que te ficou?
— Não percebo o que queres dizer.
— Descabaçaste alguma miúda? – perguntou o dirigente.

mayombe (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora