Tens sempre medo?
O outro contemplou-o, assustado. Sim, assustado, reparou Sem Medo. Assustado, mas,
no fundo, como que aliviado. Num rompante inconsciente, como a libertar-se, Teoria disse:
— Sim, tenho sempre medo. O medo persegue-me. Não sei porque to digo, mas é a
verdade. Tenho medo de fazer guarda à noite, tenho medo do combate, tenho medo mesmo de
viver na Base...
— Desconfiava disso. E porque não o mostras?
— Mostrar? Um mestiço mostrar o medo? Já viste o que daria? Tenho procurado
sempre dominar-me, vencer-me... compreendes? É como se eu fosse dois: um que tem medo,
sempre medo, e um outro que se oferece sempre para as missões arriscadas, que apresenta
constantemente uma vontade de ferro... Há um que tem vontade de chorar, de ficar no
caminho, porque o joelho dói, e outro que diz que não é nada, que pode continuar. Porque há
os outros! Sei que, sozinho, sou um covarde, seria incapaz de ter um comportamento de
homem. Mas quando os outros estão lá, a controlar-me, a espiar-me as reações, a ver se dou um
passo em falso para então mostrarem todo o seu racismo, a segunda pessoa que há em mim
predomina e leva-me a dizer o que não quero, a ser audaz, mesmo demasiado, porque não
posso recuar... É duro!
Sem Medo passou-lhe o cigarro que fumara até meio. Teoria agarrou-se ansiosamente a
ele e fumou-o até ao fim, sem parar, tremendo. Sem Medo disse docemente:
— Há coisas que uma pessoa esconde, esconde, e que é difícil contar. Mas, quando se
conta, pronto, tudo nos aparece mais claro e sentimo-nos livres. É bom conversar. Esse é dos
tais problemas que pode destruir um indivíduo, se ele o guarda para si. Mas podes ter a certeza
de que todos têm medo, o problema é que os intelectuais o exageram, dando-lhe demasiada
importância. É realmente aqui uma origem de classe social... Todos pensamos ter duas
personalidades, a que é covarde e a outra, que não chamamos corajosa, mas inconsciente. O
medo... o medo não é problema. A questão é conseguir dominar o medo e ultrapassá-lo. Dizes
que o ultrapassas quando os outros te observam, ou quando pensas que te observam, que é o
mais verídico... mas que, se estiveres sozinho, não és capaz. Talvez. Dás demasiada importância
ao que os outros pensam de ti. Hoje, tu já não tens cor, pelo menos no nosso grupo de
guerrilha estás aceite, completamente aceite. Não é dum dia para o outro que te vais libertar
desse complexo de cor, não. Mas tens de começar a pensar que já não é um problema para ti.
Talvez sejas o único que tem as simpatias e o respeito de todos os guerrilheiros, isso já o notei
várias vezes. Não podes viver nessa angústia constante, senão os nervos dão de si. E hoje já não
há razão.
— Os meus nervos já estoiraram tantas vezes...
— Ainda não. Foram só ameaços! É bom falar, é bom conversar com um amigo, a
quem se abre o coração. Sempre que estiveres atrapalhado, vem ter comigo. A gente papeia.
Guardar para si não dá, só quando se é escritor. Aí um tipo põe tudo num papel, na boca dos
outros. Mas, quando se não é escritor, é preciso desabafar, falando. A ação é outra espécie de
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mayombe (Completo)
RomanceA história do livro tem como cenário Angola nos anos 70, período que marca as lutas pela independência do país. No primeiro capítulo intitulado "A Missão", os guerrilheiros no Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) chegam à selva de Mayomb...