pág 53

63 5 0
                                    


— Vai!
Ele ficou parado, o chapéu na mão, olhando a porta e Ondina, Ondina e a porta, sem se
decidir. Os camaradas têm fome...
— Logo venho.
E saiu, um soluço galopando, a raiva toda concentrada em André, que o obrigava a
correr-lhe atrás, a viver para ele, ele, o homem que tinha o dinheiro da comida. Disparou para a
cidade, sem falar a ninguém, vingando-se nas pedra do caminho, quase voando sobre a estrada
empoeirada, sob o Sol inclemente.
André chegou pouco depois dele. Alto, magro, uma pêra fina aguçando-lhe o rosto, ar
de intelectual-aristocrata, eis André. Agarrou o Comissário pelo braço, levou-o para a varanda,
confidenciando:
— Há aí uns problemas graves com os congoleses, sabe, camarada Comissário? Por isso
ando dum lado para o outro. Mas não me esqueci de si. Ando por aí a partir cabeças, não há
dinheiro... É verdade, não há dinheiro. Mas vamos arranjar qualquer coisa esta tarde, sim,
vamos. Almoça comigo, não é?
O Comissário queria refilar, dizer que via o jipe a andar dum lado para o outro, por isso
havia dinheiro, que se morria de fome na Base, que ele lhe mentira. Mas estava habituado a
respeitar os superiores.
— Não há comida nenhuma na Base. Ontem estive à sua espera...
— Pois é esse o problema de que lhe falei. Vieram-me chamar de urgência. Mas esta
tarde vamos arranjar qualquer coisa, já poderá seguir amanhã para a Base.
— Eu queria discutir consigo outros assuntos. O do Ingratidão...
— Ah, sim, sim, está bem. O melhor é mesmo ficar uns dias em Dolisie. – Meteu a mão
no bolso e entregou-lhe uma nota de 500 francos. – Para beber uma cerveja com a camarada
Ondina. Vamos primeiro almoçar, uns congoleses ofereceram-me uma galinha.
O Comissário não quis aceitar o dinheiro, mas André insistiu. Guardou-o com a
sensação de que estava a ser comprado: era o preço da sua compreensão. Recusar, dizer as
quatro verdades a André, era o que faria Sem Medo. Ou talvez aceitasse e lhe dissesse na
mesma as quatro verdades. Mas Sem Medo era quase da idade de André, não ele.
Sentaram-se à mesa e logo apareceram mais cinco que se sentaram e mais a mulher de
André. Era fúnji com galinha, oferecida pelos congoleses, segundo dissera André. A galinha
sabia mal ao Comissário, sabia-lhe a dinheiro do Movimento. Mas comeu. A raiva estava toda
contida nele, raiva contra André mas, sobretudo, contra si próprio. Como é fácil enfrentar o
inimigo! Mil vezes mais fácil que certos problemas políticos. Embrenhado em rancores íntimos,
limitou-se a resmungar monossílabos às perguntas de André. Este desistiu de o fazer falar.
Findo o almoço, o Comissário tentou discutir com André. Mas este despachou-o.
— Vou já tratar de arranjar comida para a Base. Há camaradas para o transporte?

mayombe (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora