— Vai!
Ele ficou parado, o chapéu na mão, olhando a porta e Ondina, Ondina e a porta, sem se
decidir. Os camaradas têm fome...
— Logo venho.
E saiu, um soluço galopando, a raiva toda concentrada em André, que o obrigava a
correr-lhe atrás, a viver para ele, ele, o homem que tinha o dinheiro da comida. Disparou para a
cidade, sem falar a ninguém, vingando-se nas pedra do caminho, quase voando sobre a estrada
empoeirada, sob o Sol inclemente.
André chegou pouco depois dele. Alto, magro, uma pêra fina aguçando-lhe o rosto, ar
de intelectual-aristocrata, eis André. Agarrou o Comissário pelo braço, levou-o para a varanda,
confidenciando:
— Há aí uns problemas graves com os congoleses, sabe, camarada Comissário? Por isso
ando dum lado para o outro. Mas não me esqueci de si. Ando por aí a partir cabeças, não há
dinheiro... É verdade, não há dinheiro. Mas vamos arranjar qualquer coisa esta tarde, sim,
vamos. Almoça comigo, não é?
O Comissário queria refilar, dizer que via o jipe a andar dum lado para o outro, por isso
havia dinheiro, que se morria de fome na Base, que ele lhe mentira. Mas estava habituado a
respeitar os superiores.
— Não há comida nenhuma na Base. Ontem estive à sua espera...
— Pois é esse o problema de que lhe falei. Vieram-me chamar de urgência. Mas esta
tarde vamos arranjar qualquer coisa, já poderá seguir amanhã para a Base.
— Eu queria discutir consigo outros assuntos. O do Ingratidão...
— Ah, sim, sim, está bem. O melhor é mesmo ficar uns dias em Dolisie. – Meteu a mão
no bolso e entregou-lhe uma nota de 500 francos. – Para beber uma cerveja com a camarada
Ondina. Vamos primeiro almoçar, uns congoleses ofereceram-me uma galinha.
O Comissário não quis aceitar o dinheiro, mas André insistiu. Guardou-o com a
sensação de que estava a ser comprado: era o preço da sua compreensão. Recusar, dizer as
quatro verdades a André, era o que faria Sem Medo. Ou talvez aceitasse e lhe dissesse na
mesma as quatro verdades. Mas Sem Medo era quase da idade de André, não ele.
Sentaram-se à mesa e logo apareceram mais cinco que se sentaram e mais a mulher de
André. Era fúnji com galinha, oferecida pelos congoleses, segundo dissera André. A galinha
sabia mal ao Comissário, sabia-lhe a dinheiro do Movimento. Mas comeu. A raiva estava toda
contida nele, raiva contra André mas, sobretudo, contra si próprio. Como é fácil enfrentar o
inimigo! Mil vezes mais fácil que certos problemas políticos. Embrenhado em rancores íntimos,
limitou-se a resmungar monossílabos às perguntas de André. Este desistiu de o fazer falar.
Findo o almoço, o Comissário tentou discutir com André. Mas este despachou-o.
— Vou já tratar de arranjar comida para a Base. Há camaradas para o transporte?
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mayombe (Completo)
RomanceA história do livro tem como cenário Angola nos anos 70, período que marca as lutas pela independência do país. No primeiro capítulo intitulado "A Missão", os guerrilheiros no Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) chegam à selva de Mayomb...