— Tão tarde?
— Estava no rio e vi um pássaro azul no céu. É sinal de Sorte. Há caça aqui perto. De
certeza que encontrarei alguma coisa, foi o que o pássaro mostrou.
— Tu e a tua superstição! – disse Sem Medo. – Vai, vai lá. Ainda vais dizer que sou o
responsável pela fome na Base, porque não deixo os caçadores marcados pela Providência irem
caçar. Claro que se não encontrares nada, continuarás a acreditar nos pássaros.
Lutamos encolheu os ombros. Saiu.
— Quando acabarás com estas crenças, Comissário? – Nem com vinte anos de
socialismo!
O Comandante voltou a ligar o rádio. A Emissora Oficial dava música de dança.
— Estávamos a falar do levantamento – disse o Comissário. – Devo dizer-te que, se
nunca te falei nisso, foi por medo de te incitar. Pensava que agarrarias logo a caução política (o
Comissário carregou no termo), para fazeres um discurso aos guerrilheiros e dares a ordem de
ataque, como se fosse uma operação...
— Como vês, enganaste-te redondamente.
Indecifrável Sem Medo, pensou o Comissário. Realmente as linhas nunca são retas.
— Sabes uma coisa, Comandante? Tenho vontade de fumar.
— Este gajo! Nunca fumas...
— Às vezes dá-me para isso.
— Toma lá um cigarro. Não te engasgues!
Sem Medo estendeu-lhe o maço. O Comissário pegou num cigarro, depois voltou a pô-
lo no maço.
— Não, deixa. Os cigarros estão a acabar. Eu não sou viciado, é egoísmo fumar um dos
poucos que te restam.
— Tens razão, não insisto. Restam-me três. A fome suporto facilmente. Mas a falta de
tabaco é pior. E quanto menos se come, mais vício de fumar se tem. Como fazer se o Das
Operações não chega hoje? Teremos mesmo de marchar sobre Dolisie.
— Só por causa dos teus cigarros?
— Claro! Aí já terei um motivo sério que me fará esquecer os escrúpulos.
O Comissário riu. Um riso juvenil, em que todos os músculos participavam no esforço.
Sem Medo, não. O riso de Sem Medo parecia vir muito do fundo e soltava-se, numa gargalhada
atroadora. O riso do Comissário vinha da pele, o seu vinha do ventre, pensou Sem Medo. Seria
a idade que levaria o riso a enterrar-se no corpo? Como rirei dentro de dez anos? Um risinho
baixo, sem mexer os lábios, sons roucos libertando-se duma garganta velha. Roncos como o do
leso, talvez. É isso, o leão está sempre associado à ideia de velhice. E dentro de vinte anos? Aos
cinquenta e cinco? Ora, nessa altura já não viverei, certamente. O riso sairá duma cova, um
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mayombe (Completo)
RomanceA história do livro tem como cenário Angola nos anos 70, período que marca as lutas pela independência do país. No primeiro capítulo intitulado "A Missão", os guerrilheiros no Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) chegam à selva de Mayomb...