pág 75

49 6 0
                                    


— Os homens? – Sem Medo sorriu tristemente. – Os homens serão prisioneiros das
estruturas que terão criado. Todo organismo vivo tende a cristalizar, se é obrigado a fechar-se
sobre si próprio, se o meio ambiente é hostil: a pele endurece e dá origem a picos defensivos, a
coesão interna torna-se maior e, portanto, a comunicação interna diminui. Um organismo
social, como é um Partido, ou se encontra num estado excepcional que exige uma confrontação
constante dos homens na prática – tal uma guerra permanente – ou tende para a cristalização.
Homens que trabalham há muito tempo juntos cada vez têm menos necessidade de falar, de
comunicar, portanto de se defrontar. Cada um conhece o outro e os argumentos do outro,
criou-se um compromisso tácito entre eles. A contestação desaparecerá, pois. Onde vai
aparecer contestação? Os contestatários serão confundidos com os contra-revolucionários, a
burocracia será dona e senhora, com ela o conformismo, o trabalho ordenado mas sem paixão,
a incapacidade de tudo se pôr em causa e reformular de novo. O organismo vivo,
verdadeiramente vivo, é aquele que é capaz de se negar para renascer de forma diferente, ou
melhor, para dar origem a outro.
— Depende dos homens – disse o Comissário. – Se são indivíduos revolucionários e,
por isso, capazes de ver quais são as necessidades do povo, poderão corrigir todos os erros,
poderão mudar as estruturas...
— E a idade? E o assento que conquistaram? Quererão perdê-lo? Quem gosta de perder
um cargo? Sobretudo quando atingem a idade do comodismo, da poltrona confortável com os
chinelos e os charutos que nessa altura poderão comprar? É preciso ser excepcional!
— Há homens excepcionais...
— Sim, há. Uma vez todas as décadas. Um só homem excepcional poderá mudar tudo?
Então tudo repousará nele e cair-se-á no culto da personalidade, no endeusamento, que entra
dentro da tradição dos povos subdesenvolvidos, religiosos tradicionalmente. O problema é
esse. É que, nos nossos países, tudo repousa num núcleo restrito, porque há falta de quadros,
por vezes num só homem. Como contestar no interior dum grupo restrito? Porque é
demagogia dizer que o proletariado tomará o poder. Quem toma o poder é um pequeno grupo
de homens, na melhor das hipóteses, representando o proletariado ou querendo representá-lo.
A mentira começa quando se diz que o proletariado tomou o poder. Para fazer parte da equipa
dirigente, é preciso ter uma razoável formação política e cultural. O operário que a isso acede
passou muitos anos ou na organização ou estudando. Deixa de ser proletário, é um intelectual.
Mas nós todos temos medo de chamar as coisas pelos seus nomes e, sobretudo, esse nome de
intelectual. Tu, Comissário, és um camponês? Porque o teu pai foi camponês, tu és camponês?
Estudaste um pouco, leste muito, há anos que fazes um trabalho político, és um camponês?
Não, és um intelectual. Negá-lo é demagogia, é populismo.
— Está bem. Que sejam todos intelectuais... Que tem isso a ver?
— Não sou contra os intelectuais. Há intelectuais que têm vergonha do seu pecado
original, que parecem desculpar-se de o ser, e gritam aos quatro ventos o seu
antiintelectualismo. Não sou desses. Sou é contra o princípio de se dizer que um Partido

mayombe (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora