— Os homens? – Sem Medo sorriu tristemente. – Os homens serão prisioneiros das
estruturas que terão criado. Todo organismo vivo tende a cristalizar, se é obrigado a fechar-se
sobre si próprio, se o meio ambiente é hostil: a pele endurece e dá origem a picos defensivos, a
coesão interna torna-se maior e, portanto, a comunicação interna diminui. Um organismo
social, como é um Partido, ou se encontra num estado excepcional que exige uma confrontação
constante dos homens na prática – tal uma guerra permanente – ou tende para a cristalização.
Homens que trabalham há muito tempo juntos cada vez têm menos necessidade de falar, de
comunicar, portanto de se defrontar. Cada um conhece o outro e os argumentos do outro,
criou-se um compromisso tácito entre eles. A contestação desaparecerá, pois. Onde vai
aparecer contestação? Os contestatários serão confundidos com os contra-revolucionários, a
burocracia será dona e senhora, com ela o conformismo, o trabalho ordenado mas sem paixão,
a incapacidade de tudo se pôr em causa e reformular de novo. O organismo vivo,
verdadeiramente vivo, é aquele que é capaz de se negar para renascer de forma diferente, ou
melhor, para dar origem a outro.
— Depende dos homens – disse o Comissário. – Se são indivíduos revolucionários e,
por isso, capazes de ver quais são as necessidades do povo, poderão corrigir todos os erros,
poderão mudar as estruturas...
— E a idade? E o assento que conquistaram? Quererão perdê-lo? Quem gosta de perder
um cargo? Sobretudo quando atingem a idade do comodismo, da poltrona confortável com os
chinelos e os charutos que nessa altura poderão comprar? É preciso ser excepcional!
— Há homens excepcionais...
— Sim, há. Uma vez todas as décadas. Um só homem excepcional poderá mudar tudo?
Então tudo repousará nele e cair-se-á no culto da personalidade, no endeusamento, que entra
dentro da tradição dos povos subdesenvolvidos, religiosos tradicionalmente. O problema é
esse. É que, nos nossos países, tudo repousa num núcleo restrito, porque há falta de quadros,
por vezes num só homem. Como contestar no interior dum grupo restrito? Porque é
demagogia dizer que o proletariado tomará o poder. Quem toma o poder é um pequeno grupo
de homens, na melhor das hipóteses, representando o proletariado ou querendo representá-lo.
A mentira começa quando se diz que o proletariado tomou o poder. Para fazer parte da equipa
dirigente, é preciso ter uma razoável formação política e cultural. O operário que a isso acede
passou muitos anos ou na organização ou estudando. Deixa de ser proletário, é um intelectual.
Mas nós todos temos medo de chamar as coisas pelos seus nomes e, sobretudo, esse nome de
intelectual. Tu, Comissário, és um camponês? Porque o teu pai foi camponês, tu és camponês?
Estudaste um pouco, leste muito, há anos que fazes um trabalho político, és um camponês?
Não, és um intelectual. Negá-lo é demagogia, é populismo.
— Está bem. Que sejam todos intelectuais... Que tem isso a ver?
— Não sou contra os intelectuais. Há intelectuais que têm vergonha do seu pecado
original, que parecem desculpar-se de o ser, e gritam aos quatro ventos o seu
antiintelectualismo. Não sou desses. Sou é contra o princípio de se dizer que um Partido
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mayombe (Completo)
RomanceA história do livro tem como cenário Angola nos anos 70, período que marca as lutas pela independência do país. No primeiro capítulo intitulado "A Missão", os guerrilheiros no Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) chegam à selva de Mayomb...