dominado pelos intelectuais é dominado pelo proletariado. Porque não é verdade. É essa a
primeira mentira, depois vêm as outras. Deve-se dizer que o Partido é dominado por
intelectuais revolucionários, que procuram fazer uma política a favor do proletariado. Mas
começa-se a mentir ao povo, o qual bem vê que não controla nada o Partido nem o Estado e é
o princípio da desconfiança, à qual se sucederá a desmobilização. Não digo que seja isto o
fundamental, nota bem.
— Sei. Mas acho que estás a ser parcial. Se se fizer uma política no geral justa e se
conseguir melhorar o nível de vida do povo, este fará confiança. E isso representará um
progresso enorme em relação à situação atual...
— Evidentemente! Comissário, compreende-me bem. O que estamos a fazer é a única
coisa que devemos fazer. Tentar tornar o país independente, completamente independente, é a
única via possível e humana. Para isso, têm de se criar estruturas socialistas, estou de acordo.
Nacionalização das minas, reforma agrária, nacionalização dos bancos, do comércio exterior
etc., etc. Sei disso, é a única solução. E ao fim de certo tempo, logo que não haja muitos erros
nem muitos desvios de fundos, o nível de vida subirá, também não é preciso muito para que ele
suba. É sem dúvida um progresso, até aí estamos de acordo, não vale a pena discutir. Mas não
chamemos socialismo a isso, porque não é forçosamente. Não chamemos Estado proletário,
porque não é. Desmistifiquemos os nomes. Acabemos com o feiticismo dos rótulos.
Democracia nada, porque não haverá democracia, haverá necessariamente, fatalmente, uma
ditadura sobre o povo. Ela pode ser necessária, não sei. Outra via não encontro, mas não é o
ideal, é tudo o que sei. Sejamos sinceros connosco próprios. Não vamos chegar aos cem por
cento, vamos ficar nos cinquenta. Porquê então dizer ao povo que vamos até aos cem por
cento?
— Como é que vais dizer que só ficaremos pelos cinquenta por cento? Isso
desmobiliza...
— Aí está onde queria chegar! Como todos os do teu grupo, pensas que se não pode
dizer a verdade ao povo, senão ele desmobiliza-se. Tem de se aumentar, tem de se exagerar,
para aquecer as esperanças que farão as pessoas aguentar os primeiros tempos duros. Eu, se
estivesse à morte, preferia que mo dissessem, detesto as mentiras piedosas. Ora, é o que vocês
querem fazer. Para que o moribundo não desanime, não se suicide, prometem-lhe a cura; os
padres prometem a salvação no outro mundo. O vosso Paraíso, aquele Paraíso que agitam
diante dos olhos das massas, é o futuro, um futuro tão abstrato quanto o Paraíso cristão.
— Não há dúvida que ainda tens problemas metafísicos. O vocabulário trai-te,
Comandante!
Sem Medo fez uma pausa. Repetiu o seu gesto maquinal de acariciar o cano da arma.
O silêncio ia invadindo a Base, ao aproximar-se a hora de recolher. Mas da casa do
Comando saíam risos abafados dos guerrilheiros que escutavam a rádio. Muatiânvua e Ekuikui,
sentados a distância dos dois homens, tentavam adivinhar nos vultos e nas palavras que por
vezes a eles chegavam se o clima de confiança fora restabelecido.
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mayombe (Completo)
RomansaA história do livro tem como cenário Angola nos anos 70, período que marca as lutas pela independência do país. No primeiro capítulo intitulado "A Missão", os guerrilheiros no Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) chegam à selva de Mayomb...