o meu protetor, o meu padrinho. Afastaste a Ondina de mim. Nunca quiseste aconselhar-me,
várias vezes te pedi. Nunca quiseste falar com ela e tu poderias tê-la convencido. Nunca
quiseste meter-te para arranjar as coisas entre nós. Querias-me a mim e por isso deixaste-me ir
até ao fracasso. Vê o que fizeste com o teu egoísmo. Vê o que fizeste. Hoje sou um corno, um
farrapo, em que pões os pés, um farrapo que todos gozam. Estás contente, Sem Medo, estás
contente?
A chapada de Sem Medo fê-lo abater-se contra a parede oposta. O Comissário levantou-
se, devagar, esfregando a face. Os olhos faiscaram.
— Cuidado, Sem Medo! Não vou lutar contigo, é isso o que a tua fúria quer. Desprezo-
te. Não vou lutar contigo não te dou essa confiança. Pensa que é medo, se quiseres não me
importo, já te enganaste tanto sobre mim que é mais uma. Pensas que me liquidaste, que
afastaste de mim o amor. Mas eu não serei um solitário como tu. Nunca me verás atrás duma
garrafa vazia. Com Ondina ou sem Ondina. Adeus, Sem Medo, até à próxima. Verás no que me
vou tornar. Cada sucesso que eu tiver, será a paga da tua bofetada, pois não serei um falhado
como tu.
Saiu, batendo com a porta. Tremendo, Sem Medo deixou-se cair na cadeira. Acendeu
um cigarro avidamente como se cada chupaça fosse a última. Imbecil, pequeno imbecil! Acabou
o cigarro. Os papéis acumulavam-se à sua frente. Dum gesto, varreu a secretária. Levantou-se e
caminhou pela sala. Imbecil, pequeno imbecil!
Saiu do bureau, marchou a pé rapidamente até ao bar mais próximo. Sentou-se na mesa
do canto e encomendou uma cerveja. Bebeu-a pelo gargalo até ao fim e pediu outra. Encheu o
copo. Não, não se ia embebedar como um miúdo. Esvaziou o copo duma assentada. Voltou a
enchê-lo. O amor! O amor torna estúpido. A mão ardia-lhe com a violência da bofetada. Era a
mesma mão que segurava o copo. Esvaziou de novo. Encomendou outra garrafa. A mulher
pediu o dinheiro. Ele pagou as três cervejas. Ela trouxe a garrafa. Tem medo que me embebede
e não tenha dinheiro. Não, não beberia mais. Esvaziou o primeiro copo, encheu-o de novo.
Seria o último. Deixara de tremer, a mão segurava agora firmemente o copo. A cerveja muito
gelada provocou-lhe uma nevralgia. Foi a cerveja ou esse miúdo? Ele, Sem Medo, sempre
resolvera sozinho os seus problemas amorosos. Desde o tempo do Seminário, em que não
podia confiar nos colegas, sempre prontos a ir denunciar no segredo da confissão. O
Comissário ameaçara-o. De quê? De passar a resolver sozinho os seus problemas pessoais.
Sentiu o que vinha, mas não pôde evitá-lo. A gargalhada encheu o bar vazio, fez levantar
as moscas que sugavam os restos de cerveja deixados sobre as mesas, levou a criada a virar-se.
A mulher viu-o agarrado ao ventre, rindo até às lágrimas. Depois encolheu os ombros e
continuou a limpar os copos.
Sem Medo parou de rir, só as lágrimas brilhavam. O miúdo mostrava as unhas,
finalmente. E ele, Sem Medo, não o compreendera, até lhe dera uma chapada. Castigara as
palavras e deixara escapar o sentido das palavras. Finalmente, suspirou ele. Finalmente! E não o
percebi, fiquei ofuscado pelas palavras. E sou eu que digo sempre que as palavras são relativas...
VOCÊ ESTÁ LENDO
mayombe (Completo)
RomanceA história do livro tem como cenário Angola nos anos 70, período que marca as lutas pela independência do país. No primeiro capítulo intitulado "A Missão", os guerrilheiros no Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) chegam à selva de Mayomb...