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— Estão a discutir?
— Só a falar – disse Muatiânvua.
— Estão zangados?
— Não sei.
— Se ao menos ficassem de acordo...
— Porque é que não haveriam de ficar?
O Comissário bateu na perna de Sem Medo. O Comandante fumava, o olhar perdido na
noite.
— Porque paraste de falar? – perguntou o Comissário. – Para não me ofenderes?
Sem Medo sorriu. Ficou ainda calado por momentos, sorrindo.
— Sei que não te ofendes com isso. Ainda tens uns restos de compreensão, ainda não és
totalmente dogmático... Isso virá, talvez, mas por enquanto ainda podes ouvir umas verdades
sem te ofenderes.
— A partir de que momento pensas que me ofenderei?
— Tu? Quando acabar a guerra. Quando fizeres parte dum Partido vitorioso e glorioso
que conquistará o poder e que considerará pagãos todos os que dele não fizerem parte. Quando
estiveres sentado no poder, pertencendo ao grupo restrito que dominará o Partido e o Estado,
depois da primeira desilusão de constatar na prática que o socialismo não é obra dum dia ou da
vontade de mil homens.
— Não é forçoso que uma pessoa se torne dogmática...
— Então terás de abandonar a capela!
— Não é forçoso...
— Ora! Vamos tomar o poder e que vamos dizer ao povo? Vamos construir o
socialismo. E afinal essa construção levará 30 ou 50 anos. Ao fim de cinco anos, o povo
começará a dizer: mas esse tal socialismo não resolveu este problema e aquele. E será verdade,
pois é impossível resolver tais problemas, num país atrasado, em cinco anos. E como reagirão
vocês? O povo está a ser agitado por elementos contra-revolucionários! O que também será
verdade, pois qualquer regime cria os seus elementos de oposição, há que prender os
cabecilhas, há que fazer atenção às manobras do imperialismo, há que reforçar a polícia secreta,
etc., etc. O dramático é que vocês terão razão. Objetivamente, será necessário apertar-se a
vigilância no interior do Partido, aumentar a disciplina, fazer limpezas. Objetivamente é assim.
Mas essas limpezas servirão de pretexto para que homens ambiciosos misturem contra-
revolucionários com aqueles que criticam a sua ambição e os seus erros. Da vigilância
necessária no seio do Partido passar-se-á ao ambiente policial dentro do Partido e toda a crítica
será abafada no seu seio. O centralismo reforça-se, a democracia desaparece. O dramático é que
não se pode escapar a isso...
— Depende dos homens, depende dos homens...

mayombe (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora