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multidão de árvores que nos rodeia? Quando estava na Europa, eu gostava de andar no meio da
gente, à hora da saída dos empregos. Anónimo, absolutamente anónimo no meio da massa. Por
isso gosto das grandes cidades ou então da mata, onde se não é anónimo, antes pelo contrário,
é-se singular, mas em que realmente uma pessoa sente ser uma personalidade singular, assim
como no meio da multidão. Por isso não gosto de cidades pequenas, que são o detestável meio
termo da mediocridade. Desculpa os palavrões, mas é isso mesmo!
Muatiânvua tocou na perna de Ekuikui. Sussurrou:
— Está tudo porreiro! É conversa mole, pá!
— Sim, parece que está tudo porreiro. Vamos deitar?
— Não, aguenta. É bom tomar conta deles, a noite está escura.
Teoria fora urinar e encontrou os outros dois.
— Que fazem aí, camaradas?
— Guarda – disse Muatiânvua, apontando os dois vultos.
Teoria sentou-se também, com a arma entre os joelhos, contemplando o Comissário e
Sem Medo.
— Enquanto os outros desejam que eles se peguem um com o outro, vocês são os
únicos que velam por eles – disse Teoria.
— Há mais, camarada, há mais! – disse Ekuikui.
Sem Medo acendeu outro cigarro. À luz do fósforo, o Comissário viu os olhos que
brilhavam. Apertou-lhe o braço.
— Comandante, podes fazer confiança em mim. Confiança total! Tens um segredo, uma
coisa que te faz ser um solitário, mais solitário que nós todos. Se achas que te faria bem contar,
podes ter confiança. A minha boca não o revelará a ninguém.
— Mais tarde, Comissário, mais tarde. Mas não penses que é um segredo temível que me
leva a ser solitário. Todos temos uma história, eu também tenho uma, mas não é nada de
especial. Sempre fui um solitário. Quando era miúdo, escondia-me para inventar aventuras
extraordinárias em que participava.... como herói, bem entendido! Tudo começou com uma
tareia que apanhei dum mais velho, e do qual fugi vergonhosamente. Como compensação,
comecei a inventar estórias, situadas nos mais variados ambientes, em que o fim era sempre o
mesmo: o duelo de morte contra esse miúdo. Até que me convenci que inventar estórias não
chegava e que era preciso agir, chegar até esse duelo de morte. Provoquei-o e lutámos. Mas
nunca mais deixei de inventar estórias em que era o herói. Como não era tipo para ficar só na
invenção das estórias, tinha dois únicos caminhos na vida: ou escrevê-las ou vivê-las. A
Revolução deu-me oportunidade de as criar na ação. Se não houvesse revolução, com certeza
acabaria como escritor, que é outra maneira de se ser solitário. Como vês, não é esse segredo,
que pensas terrível, a causa da minha solidão, é uma questão de temperamento.
— Sabes o que penso? Deverias casar.

mayombe (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora