— Se fosse senhor de mim, não viria esta noite. É um sinal de fraqueza. No fundo, sou
um fraco.
— És um homem, é tudo.
Sem Medo aspirou uma baforada. Contemplou as volutas do fumo.
— Sempre quis ultrapassar o meu lado humano. Ser Deus ou um herói mítico. Fazes
confusão entre mim e o João. O que amas em mim é o que há de comum entre o João e eu
mesmo. Apenas, não o conheces suficientemente para saberes que é esse o traço-comum. É
como se fôssemos a mesma pessoa, mas com dez anos de revolução de intervalo, percebes? Ele
pertence à geração que vencerá e que, ultrapassando-se, te poderá compreender e aceitar. Eu
compreendo-te, mas não te aceito tal como és. Tentaria modificar-te à minha imagem. Destruir-
te-ia, dominar-te-ia. Não o posso fazer.
— E se eu o quisesse?
— Para quê? Para me odiares ao fim de dois anos? Eu tenho uma imagem de mim
próprio: um caracol com a casa às costas. Assim me sinto livre, eu mesmo. O amor, o desejo,
ou a paixão podem fazer-me abandonar essa imagem. Mas perderei o respeito por mim mesmo.
É como se estivesse ferido e sentisse medo de morrer.
— Tens medo de morrer?
— Não, acho que não. Mas seria horrível se, quando estivesse a morrer, tivesse medo da
morte. Perderia o respeito de mim mesmo. A personagem que me construí seria destruída num
segundo e morreria com o sentimento de ter sido um impostor. Seria terrível! Por isso afronto a
morte. Não tenho medo da morte. Tenho medo de sentir medo, o Medo, ao morrer. Por isso
corro sempre riscos, apenas para me confrontar comigo mesmo.
— É estúpido! – disse ela.
— Não é. Nada no que é homem é estúpido. Há sempre uma razão, que pode ser
psicológica, para cada atitude. Seria estúpido, se fosse gratuito. Em mim não é gratuito, pois é
uma necessidade íntima. Claro que, se o dissesse a Mundo Novo, ele acharia que era gratuito.
Mas Mundo Novo é um político. Isso lhe quis explicar, mas ele não pode compreender. É um
botão dum aparelho, uma manivela, mais nada. Eu sou, como tu dizes, um homem. Antes de
tudo, um homem torturado, um solitário. Por isso me sinto bem no Mayombe, onde todos
somos solitários.
— Desejo-te – disse ela.
Amaram-se. Interminavelmente. Que esta noite não termine, desejou ele. Mas às quatro
da manhã deveriam partir.
Mundo Novo encarregava-se de tudo para ele poder descansar. Olhou o quadrante
luminoso: uma da madrugada.
— Temos três horas – disse ele.
— Temos toda a vida – disse ela.
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mayombe (Completo)
RomanceA história do livro tem como cenário Angola nos anos 70, período que marca as lutas pela independência do país. No primeiro capítulo intitulado "A Missão", os guerrilheiros no Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) chegam à selva de Mayomb...