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desabafo, muitos de nós utilizam esse método, outros batem na mulher ou embebedam-se. Mas
a ação como desabafo perde para mim todo o seu valor, torna-se selvática, irracional. As outras
formas são uma covardia. Só há a conversa franca que me parece o melhor, a mim que não sou
escritor. Não foi por acaso que os padres inventaram a confissão, ela corresponde a uma
necessidade humana de desabafo. A religião soube desde o princípio servir-se de certas
necessidades subjetivas, nasceu mesmo dessas necessidades. Por isso o cristianismo foi tão
aceite. Há certas seitas protestantes, não sei se todas, em que a confissão é pública. Isso
corresponde a um maior grau de sociabilidade, embora leve talvez as pessoas a serem menos
profundas, menos francas, na confissão. Corresponde melhor à hipocrisia burguesa... E daí não
sei, pois eu nunca fui muito franco nas minhas confissões individuais de católico...
Lutamos tinha apanhado um grande peixe e os outros aplaudiram, esquecidos do sítio
onde se encontravam. O Comissário mandou-os calar.
— Mas será que o medo passa? – perguntou Teoria. – Eu nunca fui um miúdo muito
combativo, nunca me tinha experimentado. Será que ficarei sempre em pânico?
— O teu problema principal é o complexo racial. Esse é que condiciona o outro, penso
eu. Se ficares libertado dele e compreenderes que tirar o xangui de vez em quando não te vai
rebaixar aos olhos dos outros, que o fazem constantemente e sem remorsos, então deixarás de
ter pânico e reagirás normalmente, com medo umas vezes, sem medo doutras. De qualquer
modo, já combateste frequentemente, já é altura de te habituares...
— E tu? Nunca sentes medo?
— Eu? Às vezes sinto, sim. O pulso acelera-se, tenho frio, mesmo dor de barriga.
Outras vezes, não. Geralmente, nos momentos de maior perigo, fico calmo, lúcido. Penso
sempre que assustar-me é pior. Isso ajuda. Mas procuro sempre o medo, isso é verdade. Não
tenho propriamente medo da morte, assim, a frio. Tenho medo é de me amedrontar quando vir
que vou morrer, e perder o respeito por mim próprio. Deve ser horrível morrer com a sensação
que os últimos instantes de vida destruíram toda a ideia que se tem de si próprio, toda a ideia
que se levou uma vida inteira a forjar de si próprio.
O Chefe de Operações aproximou-se deles, mas, como os viu conversando baixo,
afastou-se. Sem Medo chamou-o.
— Há alguma coisa?
— É melhor preparar-se o almoço, não?
— Sim, sim, aproveita-se.
Sem Medo e Teoria foram ajudar a preparar o almoço.
Depois de comerem, voltaram a avançar. Encontraram uma montanha pela frente, que
atacaram às duas da tarde. A primeira parte da montanha estava coberta de folhas de xikuanga,
o que dificultava a ascensão. As mochilas pesavam nos ombros, as pernas vergavam-se.
Paravam frequentemente, para retomar o fôlego. Quando parecia que se aproximavam do
cume, surgia nova elevação. As folhas de xikuanga foram substituídas por mata espessa, que era

mayombe (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora