— E esta serra mecânica, a quem é que ela pertence verdadeiramente? O patrão
comprou-a aos alemães, mas onde arranjou dinheiro para comprá-la? Quem explorou ele para
comprar esta serra? Respondam.
— Aos trabalhadores – respondeu o jovem António.
— Esta serra pertence-vos, pertence ao povo. Por isso não pode voltar para o
colonialista. A gente dava-a a vocês, porque é vossa, mas que vão fazer com ela? Podem vendê-
la? Podem utilizá-la?
— Não. É melhor levarem a serra – respondeu o trabalhador mais velho, o que tinha as
pernas tortas. – Nós não podemos utilizar isso.
— O que é vosso, os machados, as catanas, os canivetes, os relógios, o dinheiro, tudo o
que é vosso, vocês vão levar convosco. E vão levar os machados e catanas dos que fugiram,
para lhes entregar. Mas o que é do colonialista fica connosco. Os tugas dizem que somos
bandidos, que matamos o povo, que roubamos. Fizemo-vos mal? Matámos alguém? Mesmo o
branco, podíamos matá-lo, não quisemos. Não somos bandidos. Somos soldados que estamos a
lutar para que as árvores que vocês abatem sirvam o povo e não o estrangeiro. Estamos a lutar
para que o petróleo de Cabinda sirva para enriquecer o povo e não os americanos. Mas como
nós lutamos contra os colonialistas, e como os colonialistas sabem que, com a nossa vitória,
eles perderão as riquezas que roubam ao povo, então eles dizem que somos bandidos, para que
o povo tenha medo de nós e nos denuncie ao exército.
A conversa prolongava-se, ora em português com o Comissário e Teoria, ora em fiote
com Lutamos. Os trabalhadores contaram o que sabiam dos quartéis da Região, das condições
de vida, do que pensavam as populações. Sem Medo escutava, mas estava também atento aos
comentários do resto dos guerrilheiros. Estes dividiam-se grosso modo em dois grupos: os
kimbundos, à volta do Chefe de Operações, e o grupo dos outros, os que não eram kimbundos,
os kikongos, umbundos e destribalizados como o Muatiânvua, filho de pai umbundo e mãe
kimbundo, nascido na Lunda. Mundo Novo era de Luanda, de origem kimbundo, mas os
estudos ou talvez a permanência na Europa tinham-no libertado do tribalismo. Mantinha-se
isolado, limpando a arma à luz da fogueira.
Quando se deitaram, o Comissário perguntou a meia voz:
— Então, que pensas desta operação?
— Falas que nem um padre – disse Sem Medo. – Se não acreditaram em ti, pelo menos
são suficientemente bem educados para não o mostrarem... Penso que sim, que é preciso
repetir ações deste género, este povo pode ser mobilizado. Se tivéssemos aqui uma organização
sólida, sim. Mas que queres? Com a organização que temos, com a bandalheira que há, estas
ações lembram-me demasiado as promessas do Seminário. Por isso te falei em padres. É como
se prometesses a vida eterna no Além, quando na Terra fazes o máximo por tornar a vida
insuportável.
— Não percebo o que queres dizer.
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mayombe (Completo)
RomanceA história do livro tem como cenário Angola nos anos 70, período que marca as lutas pela independência do país. No primeiro capítulo intitulado "A Missão", os guerrilheiros no Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) chegam à selva de Mayomb...