pág 21

114 3 0
                                    

— E esta serra mecânica, a quem é que ela pertence verdadeiramente? O patrão
comprou-a aos alemães, mas onde arranjou dinheiro para comprá-la? Quem explorou ele para
comprar esta serra? Respondam.
— Aos trabalhadores – respondeu o jovem António.
— Esta serra pertence-vos, pertence ao povo. Por isso não pode voltar para o
colonialista. A gente dava-a a vocês, porque é vossa, mas que vão fazer com ela? Podem vendê-
la? Podem utilizá-la?
— Não. É melhor levarem a serra – respondeu o trabalhador mais velho, o que tinha as
pernas tortas. – Nós não podemos utilizar isso.
— O que é vosso, os machados, as catanas, os canivetes, os relógios, o dinheiro, tudo o
que é vosso, vocês vão levar convosco. E vão levar os machados e catanas dos que fugiram,
para lhes entregar. Mas o que é do colonialista fica connosco. Os tugas dizem que somos
bandidos, que matamos o povo, que roubamos. Fizemo-vos mal? Matámos alguém? Mesmo o
branco, podíamos matá-lo, não quisemos. Não somos bandidos. Somos soldados que estamos a
lutar para que as árvores que vocês abatem sirvam o povo e não o estrangeiro. Estamos a lutar
para que o petróleo de Cabinda sirva para enriquecer o povo e não os americanos. Mas como
nós lutamos contra os colonialistas, e como os colonialistas sabem que, com a nossa vitória,
eles perderão as riquezas que roubam ao povo, então eles dizem que somos bandidos, para que
o povo tenha medo de nós e nos denuncie ao exército.
A conversa prolongava-se, ora em português com o Comissário e Teoria, ora em fiote
com Lutamos. Os trabalhadores contaram o que sabiam dos quartéis da Região, das condições
de vida, do que pensavam as populações. Sem Medo escutava, mas estava também atento aos
comentários do resto dos guerrilheiros. Estes dividiam-se grosso modo em dois grupos: os
kimbundos, à volta do Chefe de Operações, e o grupo dos outros, os que não eram kimbundos,
os kikongos, umbundos e destribalizados como o Muatiânvua, filho de pai umbundo e mãe
kimbundo, nascido na Lunda. Mundo Novo era de Luanda, de origem kimbundo, mas os
estudos ou talvez a permanência na Europa tinham-no libertado do tribalismo. Mantinha-se
isolado, limpando a arma à luz da fogueira.
Quando se deitaram, o Comissário perguntou a meia voz:
— Então, que pensas desta operação?
— Falas que nem um padre – disse Sem Medo. – Se não acreditaram em ti, pelo menos
são suficientemente bem educados para não o mostrarem... Penso que sim, que é preciso
repetir ações deste género, este povo pode ser mobilizado. Se tivéssemos aqui uma organização
sólida, sim. Mas que queres? Com a organização que temos, com a bandalheira que há, estas
ações lembram-me demasiado as promessas do Seminário. Por isso te falei em padres. É como
se prometesses a vida eterna no Além, quando na Terra fazes o máximo por tornar a vida
insuportável.
— Não percebo o que queres dizer.

mayombe (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora