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tomei a personalidade dum libertino, compreensivo com tudo e todos. No primeiro mês, Leli
não me pertenceu, pertencia ao outro. Mas observei nela a desilusão cavar-se, à medida que o
tempo passava e conhecia melhor o outro. Inconscientemente ela tinha de fazer a comparação
comigo, o novo homem, agora adulto, que à sua frente surgia. Foi com requinte que me moldei
a personalidade que lhe devia apresentar. E ela começou a lamentar a escolha. Eu aparecia
frequentemente com raparigas e sentia o ciúme dela avivar-se. Leli sempre fora uma
comediante, mas conhecia-a bem de mais para ser enganado: Leli tinha ciúmes de qualquer
miúda que eu olhasse com interesse. Era cedo ainda para atuar. Deixei-a desiludir-se
completamente do outro. Jantávamos juntos quase todos os dias e ela confidenciava-me as suas
amarguras. Eu, sub-repticiamente, levava-a a aperceber-se da vaidade do outro, das suas
pretensões, das suas ideias atrasadas. O pequeno-burguês-tipo. Leli não era pequeno-burguesa,
teria mais defeitos de grande-burguesa que de pequeno-burguesa.
— Poça! Foi preciso sangue-frio... Até fizeste uma análise de classe?
— Não, isso sou eu agora a explicar, naquele momento não o seria capaz de fazer.
Sem Medo tirou os pés da água e esfregou-os distraidamente.
— A partir do segundo mês, era já certo que Leli estava farta dele. Só sexualmente ainda
havia uma certa ligação entre eles. Era nesse domínio que eu teria de agir. Chegou uma noite
em que ela confidenciou que iria arranjar um amante. Comigo nunca o fizera, porque me
respeitava. Mas a ele... Disse-o de uma maneira superficial, talvez mais para saber a minha
opinião. Nessa noite convidei-a a minha casa. Pus discos, dançámos e, por fim, ataquei-a. Só se
apercebeu do que acontecia depois já de termos feito amor. Procurou ainda lamentar-se, mas eu
disse-lhe que era o mais natural, que nada tinha a reprovar-se. Fizemos amor durante a noite
inteira. No dia seguinte, ela foi buscar as suas coisas à casa do outro.
O Comandante calou-se, os olhos perdidos no vago.
— E depois?
— Vivemos assim dois meses. Vem o mais difícil de contar, agora. Enquanto estivemos
separados, habituei-me à nova personalidade que me forjara. Todo o esforço de dominar o
ciúme, de pensar nela como uma vítima a abater, acabou por me endurecer. Deixei de a gramar
ou, pelo menos, de a gramar da maneira absoluta como até aí. Eu precisava de me libertar dela,
da influência que Leli tinha sobre mim. Para isso tinha de a reconquistar, de me sentir superior
a ela, de ser capaz de agir apenas racionalmente, apenas movido pela razão, sem sentimentos.
Depois de a reconquistar, senti-me liberto.
— Estavas desforrado, não é isso?
— Se quiseres, o meu amor-próprio estava vingado. Comecei a descobrir realmente todo
o lado mesquinho que Leli possuía mas que, até aí, eu não descobrira. O hábito de ter outras
mulheres levou-me à busca de outras mulheres. Nunca mais lhe fui fiel. Ela sabia-o, mas
perdoava. Pensava que o fazia por vingança tardia. Estava toda chocada com o que se passara e
maravilhada ainda por eu a ter aceitado. Não sei se compreendes, mas o problema é que ela se

mayombe (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora