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perceber as alusões dos companheiros e fumou, indiferente. Muatiânvua desistiu de provocar
conversa e foi observar o rio, a ver se havia peixe. Entretanto, Lutamos olhava o Comandante,
discutindo interiormente se deveria falar diretamente ou não. Há coisa no ar, pensou Sem
Medo, sente-se no ambiente abafado da Base, no nervosismo dos homens. E aqui aproxima-se
trovoada.
— Vamos até ao deserto – disse ele.
Andaram mais meia hora e saíram da mata, para uma montanha sem árvores, só com
capim. A isso chamavam deserto. Tudo é relativo. Para um homem habituado a ter folhas até
cinquenta metros acima da cabeça, qualquer terreno em que só encontra capim é um deserto.
Da mesma maneira, a savana seria um Mayombe para o camelo. Ainda há homens para os quais
a sua verdade tem de ser conhecida por todos, pensou Sem Medo, se a própria vida nos leva a
relativizar tudo, até o próprio vocabulário!
O Sol forte do meio da tarde feriu-lhes a vista e tiveram de se habituar aos poucos,
piscando longamente os olhos. Sentaram-se no alto do monte, vigiando o horizonte.
Muatiânvua e Sem Medo tiraram a camisa e puseram-na a secar sobre o caminho em que se
encontravam, utilizado pelos soldados portugueses para patrulhas na região.
As nuvens acumulavam-se sobre a floresta, à sua frente. A floresta concentra nela as
nuvens, pensou Sem Medo. Elas vêm dos desertos e vão cruzar-se, penetrar-se, sobre o
Mayombe. Correm livremente pelo espaço, em jogos essenciais de deformação constante – ou
recriação constante – para serem atraídas em massa informe, se tornarem prisioneiras do seu
próprio conteúdo. Uma nuvem isolada tem a individualidade que lhe é dada pela sua
mutabilidade inquieta e caprichosa; esta individualidade perde-se na massa que se concentra e
que vale pelo seu peso, pela sua potência selvagem.
Sem Medo identificou-se a uma nuvem cinzenta, com fímbrias brancas, que corria em
revolução constante, e parecia poder escapar-se, poder passar ao lado da massa de nuvens que
se adensava sobre o Mayombe. O coração pulsando, seguiu os movimentos frenéticos da
nuvenzita que ora era ave ora luz ora cabelos de mulher loira, ora cavalo galopando. Dentro de
si fazia votos para que ela passasse ao lado da massa ameaçadora que a atraía invencivelmente.
Por momentos, pareceu-lhe que a nuvem passaria ao lado e percorreria livremente o seu
caminho precipitado. Mas, ou foi um golpe de vento ou a atração, o certo é que a nuvenzita foi
engolida pela massa cinzento-escura e se desfez nela. Um aperto no coração e um gesto de
desalento acompanharam a sua voz:
— Que se passa então, camaradas?
Muatiânvua não esperava senão isso. Cofiou a barba, enquanto os olhos pareciam soltar-
se do rosto anguloso.
— O que se passa é que está a haver agitação na Base. Uns dizem que se não há comida
é porque a direção não faz confiança no Comando da Base, que está dividido. Outros que
porque o Comandante não serve e não faz ações que justifiquem a comida. Outros, esses são
poucos, dizem que a culpa é dos civis e que é preciso mudar as coisas. Há os que são pelo

mayombe (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora