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— Não, a gente só contou o que dizem os guerrilheiros – disse Muatiânvua. – Eu não
vou com uma pessoa contra outra. Eu vou com o que tem razão. Não gosto de intrigas, sempre
falei de homem a homem. O que disse posso repetir numa reunião, com o André e tudo.
— Eu sei – disse Sem Medo.
Muatiânvua era considerado por muitos como «anarquista nas palavras». Quando se
levantava numa reunião muitos tremiam intimamente: Muatiânvua só falava quando tinha uma
bomba para a discussão, que atirava para o meio da reunião, com um ricto trocista na boca, os
cabelos em desordem e os olhos dardejando desprezo para o responsável em falta. Fora muitas
vezes indigitado para estágios ou mesmo para promoções. Mas sempre aparecia um inimigo
feito pelas suas palavras para lhe sabotar o estágio ou a promoção. Muatiânvua encolhia os
ombros e dizia que não viera para passear pelo estrangeiro – que conhecia devido às viagens de
marinheiro – ou para ser chefe; viera para lutar.
Sem Medo bateu-lhe no braço.
— Eu sei. Não falo para ti, nem para o Lutamos. Mas há muitos que só esperavam uma
pequena discussão entre o Comissário e mim, para começarem a agitar. Muitos nem sabem o
que fazem. Estão enganados. O que nos une, a mim e ao Comissário, é muito forte, demasiado
forte.
Calou-se, porque a voz lhe saía dificilmente, pela contração da garganta. Os outros
respeitaram o seu silêncio. Sem Medo olhou o vulto ameaçador das nuvens sobre o caminho
que iriam percorrer para voltar à Base. Vestiu a camisa.
— Vamos apanhar chuva.
Não só apanharam chuva, mal se embrenharam na mata, como a noite os surpreendeu
no caminho. Tropeçavam nos troncos caídos, escorregavam no chão lamacento, enrodilhavam-
se nas lianas que os vigiavam. Sem Medo avançava à frente dos outros, impaciente por chegar,
não pelo calor da cubata, mas pelo café que o Comissário preparava, sabendo que eles estavam
cansados e friorentos. E não era pelo café, mas porque era preparado pelo Comissário para ele,
Sem Medo.
O Comissário tinha mesmo preparado o café e encheu-lhe a lata de leite que servia de
caneca. Sem Medo bebeu o café e acendeu um cigarro. Depois de fumar, mudou de farda. O
jantar esfriara há muito no prato. O Comissário sentou-se na cama, ao lado dele.
— Queria falar-te.
— Sobre o caso de ontem?
— Sim.
— Não vale a pena – disse Sem Medo.
— Vale, sim. Não vais jantar agora?
— Mais logo.
— Então vamos para fora. Já deixou de chover há muito.

mayombe (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora