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O Comissário apertou-lhe mais a mão, querendo transmitir-lhe o sopro de vida. Mas a
vida de Sem Medo esvaía-se para o solo do Mayombe, misturando-se às folhas em
decomposição.
Os obuses caíam agora a duzentos metros deles. Os guerrilheiros protestaram.
— Ninguém sai daqui – gritou o Comissário.
— Deixa-os ir, João. Eu fico... Que melhor lugar para ficar?
Mas o Comissário não ouviu o que o Comandante disse. Os lábios já mal se moviam.
A amoreira gigante à sua frente. O tronco destaca-se do sincretismo da mata, mas se eu
percorrer com os olhos o tronco para cima, a folhagem dele mistura-se à folhagem geral e é de
novo o sincretismo. Só o tronco se destaca, se individualiza. Tal é o Mayombe, os gigantes só o
são em parte, ao nível do tronco, o resto confunde-se na massa. Tal o homem. As impressões
visuais são menos nítidas e a mancha verde predominante faz esbater progressivamente a
claridade do tronco da amoreira gigante. As manchas verdes são cada vez mais sobrepostas,
mas, num sobressalto, o tronco da amoreira ainda se afirma, debatendo-se. Tal é a vida. E que
faz o rosto do mecânico ali no tronco da amoreira! Sorri para mim.
Os olhos de Sem Medo ficaram abertos, contemplando o tronco já invisível do gigante
que para sempre desaparecera no seu elemento verde.
O Comissário estremeceu com o estrondo do obus a menos de cinquenta metros. Os
homens resmungaram e fizeram um gesto de avançar. O Comissário enfrentou-os, a AKA em
posição de fogo, os olhos fulgurando.
— Não compreendem que ele morreu? Ele morreu! Sem Medo morreu! Não
compreendem que ele morreu? Sem Medo morreu!
Os homens olharam o vulto do Comandante e viram-lhe o sorriso nos lábios. Sorria à
vida ou à morte?
— Vamos então embora – disse Muatiânvua.
— És tu que dizes para irmos embora? – gritou o Comissário. – Tu, de quem ele gostava
tanto? Tu, Muatiânvua? Ninguém vai embora. Vamos enterrá-lo aqui.
— É loucura – disse Ekuikui. – Não temos pás nem enxadas. Os obuses caem perto.
Vamos levá-lo para outro sítio.
— Cavemos com os punhais, com as mãos, com o que quiserem. Mas ele será enterrado
aqui. Ninguém tem o direito de transportar Sem Medo morto. Onde ele morreu é onde ele fica
enterrado. É a única homenagem que lhe podemos prestar.
O Comissário atirou-se de joelhos no chão, ao lado de Sem Medo e o seu punhal
mordeu com raiva a terra. Escavava freneticamente, ao ritmo dos soluços. Um a um, os
guerrilheiros ajoelharam-se ao lado dele e imitaram-no. Os obuses caíam agora mais longe, em
ritmo decrescente. Os homens cavaram rápido, eletrizados pelo Comissário, o qual se esvaía no
buraco que alargava.

mayombe (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora