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— Depende. Há economistas que se mexem, que não trabalham num bureau. Não me
vês como economista, vês-me então como?
— Militar.
— Só?
— Sim, só te vejo como militar.
— Também eu, Ondina. Esse é o problema. Porque um dia será necessário abandonar a
arma, já não haverá razão para vestir farda... Porque também não gosto de estar num exército
regular.
— Que farás então, quando acabar a guerra?
— Não sei. Isso não me preocupa. E tu?
— Estamos a falar de ti. Não te vejo também como marinheiro, não é esse o teu género.
E não és pessoa para viver duma pensão e entreter os outros com os teus feitos na guerra.
— Em suma, não tenho futuro. Mas isso não me atrapalha.
— No entanto, deves fazer planos. Por vezes não sonhas com o futuro?
— Sim.
— O quê?
— Coisas impossíveis.
— Por exemplo?
— Ora. Que todos os homens deixam de ser estúpidos e começam a aceitar as ideias
dos outros. Que se poderá andar nu nas ruas. Que se poderá rir à vontade, sem que ninguém se
volte para ti e ponha um dedo na cabeça. Que se faça amor quando se quiser, sem pensar nas
consequências. Etc., etc. Coisas impossíveis, como vês.
— Pensas realmente isso?
— Se te digo!
Ondina sorriu. Apontou um bêbado que passava, cambaleando.
— Também eu gostaria. No entanto, estou a apontar aquele bêbado. E na rua, seria
capaz de me virar para trás e rir dele.
— Também eu, Ondina. Isso é que me enraivece. Queremos transformar o mundo e
somos incapazes de nos transformar a nós próprios. Queremos ser livres, fazer a nossa
vontade, e a todo o momento arranjamos desculpas para reprimir os nossos desejos. E o pior é
que nos convencemos com as nossas próprias desculpas, deixamos de ser lúcidos. Só covardia.
É medo de nos enfrentarmos, é um medo que nos ficou dos tempos em que temíamos Deus,
ou o pai ou o professor, é sempre o mesmo agente repressivo. Somos uns alienados. O escravo
era totalmente alienado. Nós somos piores, porque nos alienamos a nós próprios. Há correntes
que já se quebraram mas continuamos a transportá-las connosco, por medo de as deitarmos
fora e depois nos sentirmos nus.
— Hoje estás abatido, Sem Medo.

mayombe (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora