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suaves, a bolinha para o sítio desejado. Atingia o estado de possessão da máquina, era sem
dúvida um prazer sensual.
«No jogo, o homem que se domina e ao mesmo tempo se entrega não pode ser escravo.
Escravos são os que se entregam ao jogo sem se dominarem ou o inverso: é a dialética da
dominação-submissão que distingue o homem feito para senhor, o dominador, e o escravo.
Também no amor.
«Há homens que vencem no póquer, embora percam dinheiro. Têm tal domínio dos
nervos, sendo simultaneamente ousados, que os adversários são subjugados, não têm a
iniciativa, ficam à espera das suas reações, dos seus desejos. São os senhores que podem, numa
cartada, arriscar tudo o que ganharam, só pelo prazer de arriscar. Os adversários podem ganhar,
no sentido em que saem com mais dinheiro que o capital inicial; mas o verdadeiro vencedor foi
aquele que os fez empalidecer, apertar os lábios, roer as unhas, tremer, ter vontade de urinar, e
se arrepender num instante de jogar. O verdadeiro senhor, o conquistador, não se aborrece por
ter perdido: essa é a sua ocasião de dominar e, se de fato impôs a sua lei, contenta-se com a
derrota. São os homens de temperamento mesquinho que sofrem por perder.
«Na guerra, também há os senhores, os que decidem. Não são fatalmente os chefes,
embora essas características só se possam manifestar totalmente em situação de chefia. São os
dominadores, finalmente, os mais magnânimos para os adversários. Fazem a guerra, em parte,
como quem joga à roleta: é um meio de se confrontarem com o outro eu. São uns torturados.
Lúcidos, compreendem que o inimigo em face, tomado individualmente, é um homem como
eles; mas está a defender o lado injusto e deve ser aniquilado. A guerra revolucionária é nisso
mais dura que as clássicas. Outrora, o combatente estava convicto que o estrangeiro que
defrontava era o somatório de todos os vícios, de todas as baixezas. Era fácil odiar
pessoalmente o soldado que avançava contra ele, não o inimigo em abstrato, mas aquele
mesmo Frank, Schulz, Ahmed ou Ngonga que se metia à sua frente. Hoje, quem é o
combatente consciente que nisso acredita? Só existe o ódio ao inimigo em abstrato, o ódio ao
sistema que os indivíduos defendem. O soldado inimigo pode mesmo estar em contradição
com a causa que é forçado a defender. O combatente revolucionário sabe disso; pode mesmo
pensar que aquele inimigo é um bom camponês ou um são operário, útil e combativo noutras
circunstâncias, mas que está aqui envenenado por preconceitos, supercondicionado pela classe
dirigente para matar. O revolucionário tem de fazer um compromisso entre o ódio abstrato ao
inimigo e a simpatia que o inimigo-indivíduo lhe possa inspirar.
«Por isso esta guerra é mais dura, pois mais humana (e, portanto, mais desumana).
«O dominador, o senhor, nunca procurará matar por matar, antes pelo contrário, evitará
matar. Ele vê a guerra como o jogo ou o amor. E seu momento de perda de lucidez é quando o
ódio abstrato se concretiza no indivíduo e avança, raivosamente lúcido, contra os soldados que
procuram impedi-lo de avançar, não porque são inimigos, mas porque o impedem de avançar,
são obstáculos que têm de ser afastados do caminho. Nesse momento, o equilíbrio está vencido
e a necessidade psíquica – sentida fisiologicamente – de fazer a ação leva ao ódio frio e

mayombe (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora