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Sem Medo encolheu os ombros. Tremia ainda, mas o corpo começava a secar.
— Não me explicaste uma coisa, Comandante. Se compreendi bem, a Leli sempre
gostou de ti. Mas então porque se convenceu que gramava o outro?
— O amor é assim. Se se torna igual, a paixão desaparece. É preciso reavivar a paixão
constantemente. Eu não o sabia ainda, deixei-me convencer pela vida sem histórias que
levávamos. Vês a vida dum empregado de escritório em Luanda? Está bem que tinha o trabalho
clandestino, a Leli começava a interessar-se, estudávamos juntos o marxismo. Mas
sentimentalmente tínhamos parado. Chegámos à estabilidade. A culpa foi minha que me
acomodei à situação, que não me apercebi que a rotina é o pior inimigo do amor. Mesmo na
cama nos tornámos rotineiros. Depois apareceu o outro, metido a poeta, fazendo-lhe versos,
falando bem. Tocou na corda sentimental dela. Toda a mulher gosta de ser a musa dum poeta.
Ela mais tarde mostrou-me os poemas. Eram detestáveis, mas emocionavam Leli. Ela nunca
teve grande espírito crítico, é preciso que se diga. E ele utilizou os golpes baixos: conhecia-me
melhor que eu a ele. Em conversas ia contando a Leli como eu era, ou antes, os meus lados
negativos. Só depois de viverem juntos é que eu o conheci bem. Tinha de conhecer o
adversário para melhor o liquidar.
— E não lhe deste porrada?
— Para quê? Tirei-lhe a Leli quando o quis. Queres maior desforra do que essa?
Um bando de pássaros grandes poisou numa árvore ali perto. Grasnavam como patos.
Sem Medo pegou na arma. Depois encolheu os ombros: já havia comida na Base.
— Os primeiros tempos da vossa separação devem ter sido duros.
— Sim. As coisas não se passaram linearmente. Tinha crises de angústia, misturadas a
momentos de apatia. Todo o trabalho se ressentiu. À noite pensava que ela estava nos braços
do outro. Esforçava-me então por adormecer, para me convencer de que era o mais forte,
capaz de dominar todo o sentimento. Adormecia esgotado. Por vezes tinha vontade de lhe
rogar que voltasse. Mas à sua frente mantinha um desinteresse de pedra, uma esfinge. Foi o
nome que me dei, a Esfinge. Tornou-se o meu nome de guerra, até que me deram a alcunha de
Sem Medo, nem sei porquê. A Esfinge ficava-me melhor.
O Comissário viu Sem Medo dominando o deserto, recebendo as chicotadas da areia
sem mexer as pálpebras. Tudo se passava no interior, nas convulsões da pedra, nas correntes de
ar percorrendo os túneis cavados pelo tempo, no lento borbulhar da matéria aparentemente
parada.
— O contrário da vida é o imobilismo – disse Sem Medo. – No amor é a mesma coisa.
Se uma pessoa se mostra toda ao outro, o interesse da descoberta desaparece. O que conta no
amor é a descoberta do outro, dos seus pecadilhos, das suas taras, dos seus vícios, das suas
grandezas, os seus pontos sensíveis, tudo o que constitui o outro. O amante que se quer fazer
amar deve dosear essa descoberta. Nem só querer tudo saber num momento, nem tudo querer
revelar. Tem de ser ao conta-gotas. E a alma humana é tão rica, tão complexa, que essa

mayombe (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora