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— Quando estava no Seminário, uma coisa sempre me intrigou, era uma nota
discordante. Foi essa nota discordante que me empurrou para o sacrilégio e, mais tarde, para o
ateísmo. Porque é que os padres, tão puros, tão castos, tão bondosos e tão santos, que nos
preparavam para servir Deus, para merecer Deus, prometendo-nos as delícias da vida celestial,
nos faziam a vida negra no Seminário, eram tão arbitrários, tão cruéis, tão sádicos nos
tormentos que inventavam em nossa intenção. Isso levou-me a desejar o que os horrorizava, a
querer conhecer o que eles temiam, a procurar o que eles nos proibiam de ver ou ouvir ou
sentir. Foi com um misto de terror sagrado, de prazer carnal e de prazer de vingança que tive a
primeira mulher. Em pleno Seminário, num anexo; era uma criada que aliviava os seminaristas
e, quem sabe?, alguns padres. Eu tinha 14 anos. Confessei-me na manhã seguinte e escondi o
fato, pois seria expulso: já não acreditava no segredo da confissão. E comunguei em pecado
mortal, pois, se o não fizesse, notar-se-ia que qualquer coisa se passava. E continuei a
confessar-me, sem coragem de lavar o sacrilégio. E continuei a encontrar-me com a criada nos
anexos e a ter cada vez maior prazer no amor e, sobretudo, no fato de ser um amor perverso,
envenenado pelo sacrilégio que nunca corrigiria. Até que, aos 16 anos, já fora do Seminário –
donde finalmente fui expulso por ameaçar de bater num padre branco que fazia racismo aberto
–, tornou-se intolerável o medo do Inferno, senti-me danado, perseguido por mil crimes e por
todos os prazeres ignóbeis que praticara. A certeza de que estava perdido foi tão grande que
decidi que o Inferno não existia, não podia existir, senão eu estaria condenado. Ou negava,
matava o que me perseguia, ou endoidecia de medo. Matei Deus, matei o Inferno e matei o
medo do Inferno. Aí aprendi que se devem enfrentar os inimigos, é a única maneira de se
encontrar a paz interior.
— Não vejo a relação – disse o Comissário.
— Eu também não. A princípio via-a, agora já nem sei porque falei nisso. Mas tu a falar,
a prometer liberdade, fizeste-me lembrar o Seminário, que queres?
E tapou a cabeça com o cobertor, caindo imediatamente em sono profundo.
O Comissário ficou a pensar nas palavras de Sem Medo, a olhar as chamas da fogueira
que modificavam as feições dos homens e das coisas, e abriam as confidências.
Depois do mata-bicho, despediram-se dos trabalhadores, devolvendo-lhes tudo o que
lhes pertencia. Tudo não, pois foi impossível encontrar a nota de cem escudos que tinham
retirado dos bolsos do mecânico, e que Ekuikui guardara. Tinham revistado os bolsos, a roupa,
o sacador de Ekuikui, e não a encontraram. Ekuikui chorava, dizendo que ainda à noite estava
no seu bolso, quisera entregá-la ao Comissário, este dissera que não valia a pena, que ficasse
com Ekuikui e que, de manhã, seria restituída ao dono. Durante a noite desaparecera, alguém a
roubara, protestava o ex-caçador. Mas ele não a escondera, nunca roubaria um homem do
povo, sabia o que isso significava para o Movimento. Despediram-se dos trabalhadores, o
mecânico dizendo que não tinha importância, era pouco dinheiro. O que queria era ver-se livre
e o problema da nota atrasava a partida e a liberdade.

mayombe (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora