— Para ti não tem realmente importância, João?
O Comissário baixou os olhos, que, num instante, se tinham perturbado. Logo os
ergueu. Mas o brilho luminoso desaparecera.
— Farei os possíveis, Sem Medo. Hei-de habituar-me aos poucos à ideia.
Não serás capaz, pensou Sem Medo. Talvez na próxima experiência, aí já serás
suficientemente relativo e sem preconceitos. Mas agora ainda é cedo. Eu tinha um ano a menos
do que tu, vê o que deu. Também eu tentei passar a esponja, em circunstâncias talvez menos
dramáticas. Ou talvez mais dramáticas, quem pode comparar o incomparável? Ondina não é
Leli, Ondina é dominadora, Leli era submissa. O problema não está em Ondina, e isso é o pior.
O problema estava em mim, está em ti. Também tu queres libertar-te, dizendo tu a última
palavra. Será bem isso? Será talvez o amor verdadeiro, aquele que abafa o amor próprio.
Existirá realmente? Existiu em Leli, no fim, quando me tentou reconquistar. Fase passageira,
enquanto não encontrou outro. O certo é que não encontrou outro apenas porque não teve
tempo. E no João, existirá realmente?
— Como a convenceste? Porque suponho que ela não queria.
— À força. Quase que a violei. Depois aceitou.
E o resto, João? O sexo era o fim, mas antes? Será mesmo o fim? É a base, bem pode
ser o princípio. Quem sabe onde é o fim ou o princípio da circunferência? O amor é uma
circunferência, cujo centro é o sexo, talvez assim seja mais verdade. E afinal não é nada. Quem
pode delimitar o amor, quem o pode geometrizar?
— Deverias falar com ela, Sem Medo.
— Talvez.
Quem se mete entre um homem e uma mulher nunca resolve nada, antes complica. Mas
não te posso dizer, João. Como dizer: não acreditas nas fadas boas? Como dizer-te que se eu
tentasse fazer-vos colar talvez fosse eu o ácido que acabaria por corroer a vossa frágil ligação?
As coisas devem passar-se só entre vocês, nunca aceites um conselheiro no casal, João. Como
dizer? Quantos lares destruídos por terceiros armados em aprendizes feiticeiros? Destruídos
aqueles que tinham os alicerces em ruínas. É o teu caso, João. É sempre o caso quando tem de
se pedir o auxílio de terceiros. A gangrena já destruiu os alicerces, a cola não serve para nada, é
preciso desmoronar para construir de novo. Sim, mas como dizer?
— Tens de ser tu e ela a resolver, João.
— Tu és meu amigo, podes ajudar, Sem Medo.
— Não. Cada um parte a cabeça como melhor entende!
— Deixas-me só?
— Já resolveste o problema. Será essa a melhor maneira? Como posso saber? Só vocês o
sabem.
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mayombe (Completo)
RomanceA história do livro tem como cenário Angola nos anos 70, período que marca as lutas pela independência do país. No primeiro capítulo intitulado "A Missão", os guerrilheiros no Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) chegam à selva de Mayomb...