pág 94

37 4 0
                                    

94
momento em que sentira no corpo as convulsões do traidor apunhalado. A mesma sensação
amparou-se dele e quis repelir o Comissário. O pânico apossou-se de Sem Medo, abraçando um
Comissário moribundo que tremia. Não podia repeli-lo, ele precisava de se aninhar no seu colo
e deixar escapar toda a raiva, todo o desespero que nele se acumulara. Sem Medo suportou
estoicamente a sensação desagradável, até que o Comissário acalmou.
Levantou-se, pegou na arma e caminhou para trás, em direção da Base. Sem Medo
seguiu-o. Chegado ao primeiro rio, o Comissário parou e meteu a cabeça na água. Retirou a
cabeça da água para inspirar e de novo a mergulhou, até ficar sem fôlego. Repetiu a operação
cinco vezes. Por fim, sentou-se numa pedra. A água caía-lhe da cabeça e escorria pelo pescoço,
molhando a camisa. Ergueu-se num repelão.
— Vou a Dolisie.
— Disparate! Espera e vamos amanhã.
— Preciso de a ver hoje. Preciso de estar descansado.
— Descansado de quê?
— Saber realmente o que se passou.
— E o André? Que pensas fazer em relação a ele?
O Comissário olhou Sem Medo. Olhar puro, de criança, embaciado pelas lágrimas. É
assim que te vais tornando homem, pensou Sem Medo. Tornar-se homem é criar uma casca à
volta, cheia de picos que protejam, uma casca cada vez mais dura, impenetrável. Ela endurece
com os golpes sofridos.
— Nada. Claro que não lhe vou fazer nada. O Movimento que se encarregue.
— Pensei que te quisesses vingar.
— Vingar de quê? Não a violou!
— Mas há pouco estavas a dizer que todos os responsáveis são iguais, que abusam do
seu poder.
— Isso compete à organização. A falta dele é em relação ao Movimento, é um
responsável que faltou à disciplina da organização. Não tenho nada com isso. O que me
interessa é ela.
— Quer dizer que fazes confiança no Movimento, então...
— Como não hei-de fazer, Comandante? Que seria eu sem o Movimento? Um órfão. Se
o Movimento ainda tem tipos como tu, então como não hei-de fazer confiança?
— Cuidado! Essas ideias são perigosas e erradas. Daí a cair-se no culto da
personalidade...
— Que burro sou! Estás para aí a puxar discussão, para me distrair e me atrasar, e eu a
cair na armadilha... Vou-me embora. Deixa-me passar!
— Não, João, não passarás. Vamos amanhã.
— Deixa-me passar!

mayombe (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora