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momento em que sentira no corpo as convulsões do traidor apunhalado. A mesma sensação
amparou-se dele e quis repelir o Comissário. O pânico apossou-se de Sem Medo, abraçando um
Comissário moribundo que tremia. Não podia repeli-lo, ele precisava de se aninhar no seu colo
e deixar escapar toda a raiva, todo o desespero que nele se acumulara. Sem Medo suportou
estoicamente a sensação desagradável, até que o Comissário acalmou.
Levantou-se, pegou na arma e caminhou para trás, em direção da Base. Sem Medo
seguiu-o. Chegado ao primeiro rio, o Comissário parou e meteu a cabeça na água. Retirou a
cabeça da água para inspirar e de novo a mergulhou, até ficar sem fôlego. Repetiu a operação
cinco vezes. Por fim, sentou-se numa pedra. A água caía-lhe da cabeça e escorria pelo pescoço,
molhando a camisa. Ergueu-se num repelão.
— Vou a Dolisie.
— Disparate! Espera e vamos amanhã.
— Preciso de a ver hoje. Preciso de estar descansado.
— Descansado de quê?
— Saber realmente o que se passou.
— E o André? Que pensas fazer em relação a ele?
O Comissário olhou Sem Medo. Olhar puro, de criança, embaciado pelas lágrimas. É
assim que te vais tornando homem, pensou Sem Medo. Tornar-se homem é criar uma casca à
volta, cheia de picos que protejam, uma casca cada vez mais dura, impenetrável. Ela endurece
com os golpes sofridos.
— Nada. Claro que não lhe vou fazer nada. O Movimento que se encarregue.
— Pensei que te quisesses vingar.
— Vingar de quê? Não a violou!
— Mas há pouco estavas a dizer que todos os responsáveis são iguais, que abusam do
seu poder.
— Isso compete à organização. A falta dele é em relação ao Movimento, é um
responsável que faltou à disciplina da organização. Não tenho nada com isso. O que me
interessa é ela.
— Quer dizer que fazes confiança no Movimento, então...
— Como não hei-de fazer, Comandante? Que seria eu sem o Movimento? Um órfão. Se
o Movimento ainda tem tipos como tu, então como não hei-de fazer confiança?
— Cuidado! Essas ideias são perigosas e erradas. Daí a cair-se no culto da
personalidade...
— Que burro sou! Estás para aí a puxar discussão, para me distrair e me atrasar, e eu a
cair na armadilha... Vou-me embora. Deixa-me passar!
— Não, João, não passarás. Vamos amanhã.
— Deixa-me passar!
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mayombe (Completo)
RomanceA história do livro tem como cenário Angola nos anos 70, período que marca as lutas pela independência do país. No primeiro capítulo intitulado "A Missão", os guerrilheiros no Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) chegam à selva de Mayomb...