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quais os centros de prazer, quais as defesas que se forjam. Ondina era uma destas últimas. Sabia
pelo Comissário que já conhecera outros homens, aos quinze anos fora deflorada, desde então
tivera regularmente relações. Aos vinte e dois anos era uma mulher, sentimentalmente muito
mais velha que o noivo, adolescente de vinte e cinco anos.
— Já te disse que uma mulher deve ser conquistada permanentemente – disse Sem
Medo. – Não te podes convencer que ela ficou conquistada no momento em que te aceitou,
isso era só o prelúdio. O concerto vem depois e é aí que se vê a raça, o talento, do maestro. O
amor é uma dialética cerrada de aproximação e repúdio, de ternura e imposição. Senão cai-se na
rotina, na mornez das relações e, portanto, na mediocridade. Detesto a mediocridade! Não há
nada pior no homem que a falta de imaginação. É o mesmo no casal, é o mesmo na política. A
vida é criação constante, morte e recriação, a rotina é exatamente o contrário da vida, é a
hibernação. Por vezes, o homem é como o réptil, precisa de hibernar para mudar de pele. Mas
nesse caso a hibernação é uma fase intensa de autoescalpelização, é pois dinâmica, é criadora.
Não a rotina. Evita a rotina no amor, as discussões mesquinhas sobre os problemas do dia-a-
dia, procura o fundamental da coisa. Para ti, o fundamental é a diferença cultural entre os dois.
Ainda não te livraste desse complexo. Ao falar dela, há uma admiração latente pela sua maneira
de se exprimir, uma procura das suas frases, da sua pronúncia mesmo. No entanto, tu és mais
culto que ela. Os teus estudos foram menos avançados, mas tens uma compreensão da vida
muito superior. Ela conhece mais Física ou Química, mas é incapaz de compreender a natureza
profunda da oposição entre os dois pólos do elétrodo e da sua ligação essencial. Tu pouco
conheces de Física, mas és capaz de a compreender melhor, porque conheceste a dialética na
vida. A tua ação na luta, em que estás a contribuir para transformar a sociedade, é um fato
cultural muito mais profundo que todos os conhecimentos literários que ela tem. Vocês os dois
podem completar-se, pois têm muito para ensinar um ao outro. Mas tu fechas-te no teu
complexo, na consciência da tua incultura que, afinal, é só aparente; ela sente isso e considera-
se intelectualmente superior, daí até ao desprezo só vai um passo. És tu que a levas a dar esse
passo.
O Sol fora tragado pela folhagem. O Comissário vestiu-se. Ao calçar as botas perguntou:
— Que devo fazer?
— Conquistá-la verdadeiramente. Conquistá-la sexualmente, penso que ainda não o
fizeste. Há três meses, quando a vi, ela tinha todo o aspecto de quem não estava totalmente
saciada sexualmente. Isso vê-se numa mulher, acredita.
— Mas como fazer?
— A receita prática? Não ta posso dar. É como o marxismo. Serve de guia, de
inspirador para a ação, mas não te resolve os problemas práticos...
Calou-se, riu silenciosamente, afagando a AKA. Depois continuou:
— Sempre achei ridículo o indivíduo que pega no Mao e passa uma noite a lê-lo, para
estabelecer o plano duma emboscada. O Mao dá lições de estratégia, não a tática precisa para
cada momento. O indivíduo tem de ter imaginação, estudar o terreno, e recriar a sua tática.

mayombe (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora