pág 166

37 3 0
                                    


Os morteiros continuavam a cair. Os oficiais tinham perdido a mão nos homens. Só lhes
restava a fuga.
Sem Medo seguia o combate pelo ouvido. Ainda era cedo para agir. Era aliás o
Comissário quem poderia dar as instruções, pois estava bem à frente do sítio de fuga do
inimigo. Ele, Sem Medo, dali não via nada.
Nesse momento apercebeu um vulto esguio que saltava no ar e rebolou, agachando-se.
Era João. Que faz ele? Avança para o inimigo? Loucura, pensou Sem Medo. O Comissário
levantou a cabeça e olharam-se. Estavam a vinte metros um do outro. Sem Medo fez-lhe um
gesto imperioso de parar. João encolheu os ombros e deu mais uma cambalhota, o que o fez
desaparecer.
Os primeiros soldados surgiram para aquele lado. O grupo de Sem Medo fez fogo e eles
deixaram-se cair num talude, ficando abrigados do fogo.
Então, Sem Medo viu a cena. Como num filme. João apercebera-se da existência do
talude e avançou para ficar à frente do inimigo, quando este se metesse na vala. Mas não dera a
ordem aos seus homens para avançar. Fizera-o sozinho, desafiando a coragem de Sem Medo:
era um duelo que ele impunha ao Comandante, uma espécie de roleta russa. Loucura, pensou
Sem Medo. O inimigo tinha de avançar por ali, quarenta ou cinquenta homens avançariam pelo
talude, protegidos do fogo do grupo de Sem Medo. À sua frente encontrariam o Comissário,
com a AKA.
Era um filme. Lutamos, que estava no grupo do Comissário, também percebeu o que se
passava. Saltou da sua posição, correndo para o Comissário. Seriam ao menos duas armas que
conteriam a contra-ofensiva inimiga. Mas a sua corrida foi bruscamente travada, a cabeça
violentamente atirada para trás pela rajada da Breda. Lutamos morreu instantaneamente.
O inimigo fazia agora um fogo violento contra a posição do Comissário, que estava
protegido por um tronco. A Breda varria o espaço livre entre João e os seus homens, os quais
não ousavam abandonar os refúgios. Sem Medo distinguia a AKA do Comissário, reconhecia a
sua cadência: uma rajada de três tiros, um silêncio, uma rajada de dois tiros, um silêncio. Em
breve tudo estaria acabado, pois uma bazukada inimiga destruiria o refúgio precário de João.
Era um filme. E ele espectador. A sensação de impotência.
E depois, como sempre, o formigueiro nasceu no ventre de Sem Medo. Gritou, saltando
do abrigo: «MPLA avança!» Correu, atirando a primeira granada no meio do talude. Teoria
seguiu-o imediatamente. Também Verdade. Também Muatiânvua. E a seguir os outros. O
plano de Sem Medo era o de passar ao assalto do talude, à granada, para lançar a confusão no
inimigo e salvar o Comissário.
Estava a dez metros do talude, quando a rajada da Breda o apanhou em pleno ventre, lá
onde lhe nascia o formigueiro. Caiu de joelhos, apertando o ventre. Teoria abaixou-se para ele.
— Ao ataque! – gritou ainda Sem Medo, ajoelhado, apertando o ventre.

mayombe (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora