Os morteiros continuavam a cair. Os oficiais tinham perdido a mão nos homens. Só lhes
restava a fuga.
Sem Medo seguia o combate pelo ouvido. Ainda era cedo para agir. Era aliás o
Comissário quem poderia dar as instruções, pois estava bem à frente do sítio de fuga do
inimigo. Ele, Sem Medo, dali não via nada.
Nesse momento apercebeu um vulto esguio que saltava no ar e rebolou, agachando-se.
Era João. Que faz ele? Avança para o inimigo? Loucura, pensou Sem Medo. O Comissário
levantou a cabeça e olharam-se. Estavam a vinte metros um do outro. Sem Medo fez-lhe um
gesto imperioso de parar. João encolheu os ombros e deu mais uma cambalhota, o que o fez
desaparecer.
Os primeiros soldados surgiram para aquele lado. O grupo de Sem Medo fez fogo e eles
deixaram-se cair num talude, ficando abrigados do fogo.
Então, Sem Medo viu a cena. Como num filme. João apercebera-se da existência do
talude e avançou para ficar à frente do inimigo, quando este se metesse na vala. Mas não dera a
ordem aos seus homens para avançar. Fizera-o sozinho, desafiando a coragem de Sem Medo:
era um duelo que ele impunha ao Comandante, uma espécie de roleta russa. Loucura, pensou
Sem Medo. O inimigo tinha de avançar por ali, quarenta ou cinquenta homens avançariam pelo
talude, protegidos do fogo do grupo de Sem Medo. À sua frente encontrariam o Comissário,
com a AKA.
Era um filme. Lutamos, que estava no grupo do Comissário, também percebeu o que se
passava. Saltou da sua posição, correndo para o Comissário. Seriam ao menos duas armas que
conteriam a contra-ofensiva inimiga. Mas a sua corrida foi bruscamente travada, a cabeça
violentamente atirada para trás pela rajada da Breda. Lutamos morreu instantaneamente.
O inimigo fazia agora um fogo violento contra a posição do Comissário, que estava
protegido por um tronco. A Breda varria o espaço livre entre João e os seus homens, os quais
não ousavam abandonar os refúgios. Sem Medo distinguia a AKA do Comissário, reconhecia a
sua cadência: uma rajada de três tiros, um silêncio, uma rajada de dois tiros, um silêncio. Em
breve tudo estaria acabado, pois uma bazukada inimiga destruiria o refúgio precário de João.
Era um filme. E ele espectador. A sensação de impotência.
E depois, como sempre, o formigueiro nasceu no ventre de Sem Medo. Gritou, saltando
do abrigo: «MPLA avança!» Correu, atirando a primeira granada no meio do talude. Teoria
seguiu-o imediatamente. Também Verdade. Também Muatiânvua. E a seguir os outros. O
plano de Sem Medo era o de passar ao assalto do talude, à granada, para lançar a confusão no
inimigo e salvar o Comissário.
Estava a dez metros do talude, quando a rajada da Breda o apanhou em pleno ventre, lá
onde lhe nascia o formigueiro. Caiu de joelhos, apertando o ventre. Teoria abaixou-se para ele.
— Ao ataque! – gritou ainda Sem Medo, ajoelhado, apertando o ventre.
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mayombe (Completo)
RomanceA história do livro tem como cenário Angola nos anos 70, período que marca as lutas pela independência do país. No primeiro capítulo intitulado "A Missão", os guerrilheiros no Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) chegam à selva de Mayomb...