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— É verdade, camarada Comandante. Até deve estar a chegar hoje um camarada da
Direção para resolver o caso.
Voltaram à casa do Comando. O Comissário encontrava-se lá, com alguns militantes. O
Comissário estava animado, os outros reservados, falando cerimoniosamente. O Comissário
não notava, mas Sem Medo percebeu logo. O Chefe de Operações olhou o Comandante. Este
ordenou-lhe com a cabeça o que tinha a fazer.
— Está aqui uma carta para si, camarada Comissário.
O Comissário reconheceu a letra. Um sorriso perpassou-lhe nos lábios e, sobretudo, nos
olhos. Interrompeu a conversa, rasgou precipitadamente o envelope e sentou-se na cama. Sem
Medo estudava-lhe as reações. E viu o Comissário passar lentamente, com a lentidão com que
lia a carta, do estado de deleite à estupefação, depois à incredulidade, para terminar na apatia.
Deitou-se na cama, fixando o capim do teto, a carta na mão. Ondina tinha explicado tudo, era
evidente.
Que fazer? O melhor era deixá-lo sair por si mesmo da apatia. Quando passasse ao
desespero, então sim, seria o momento de intervir.
O Comandante foi à cozinha ordenar que se preparasse um almoço abundante, mas o
chefe-dia já tinha tomado a iniciativa. Os grupos cochichavam. O mujimbo passava da boca dos
que chegavam de Dolisie para os ouvidos dos que estavam na Base. Ao menos uma vez,
pensou Sem Medo, o maior interessado não foi o último a saber. Precisava de conhecer os
pormenores da coisa antes de formular uma opinião, mas sentiu pela primeira vez uma certa
admiração por Ondina, que fora capaz de utilizar a primeira oportunidade para contar o que se
passara. Vá lá, ao menos isso abona a seu favor...
O Chefe de Operações aproximou-se.
— Vai haver grandes problemas em Dolisie, camarada Comandante. Como lhe disse, a
Direção já foi avisada. Vai ser preciso substituir o camarada André.
— Já não é sem tempo – disse Sem Medo.
— Parece-me que o camarada Comandante tem de ir lá. E o Comissário também.
— O Comissário vai se quiser. Isso é um problema pessoal, não temos que nos meter.
Também estou a pensar que tenho de ir lá, isso já é um problema de organização. Mas onde
está o André?
— Escondido. Tem medo da reação dos militantes, é o que se diz. Porque o problema
tribal vai entrar também. Vigiaram os comboios e ele não apanhou nenhum. Deve estar em
Dolisie, a menos que tenha apanhado boleia dum carro para Brazza.
André era kikongo e Ondina noiva dum kimbundo. Não é preciso ser feiticeiro para
adivinhar o clima que reinará em Dolisie, pensou Sem Medo. O André enterrou-se
definitivamente. Enquanto tinha amantes congolesas, as pessoas murmuravam mas não
ousavam agir. Agora era diferente. O dramático é que o inevitável sucedesse para André à custa

mayombe (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora