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apercebeu que me amava irresistivelmente quando sentiu que me perdeu. Depois disso, ela foi
tentando esconder a si própria essa descoberta.
— E então?
— Ao fim de dois meses, analisei-me profundamente. À mesa dum bar, como sempre
faço quando quero ser sincero comigo mesmo. Analisei-me e vi que estava liberto. Nada do que
fora era ainda. O passado estava morto, nem me emocionava ao pensar no outro ou em Leli
nos braços do outro. Decidi então acabar de vez. Entrei em casa e disse-lho. Ela não acreditou.
Repeti-lho: «Acabou, já não gosto de ti, habituei-me a viver sem ti.» Ela compreendeu por fim.
Poupo-te a descrição da cena. Disse-me algumas verdades, falou-me por exemplo do meu
orgulho sem limites que tudo sacrificava a ele. Não era totalmente verdade, tudo é mais
complicado.
— Mas tinha uma grande parte de verdade. Recuperaste-a só para a deixares a seguir,
para satisfazer o teu amor-próprio. Mas, e depois?
— Tinha de o fazer para me libertar, compreendes? De qualquer modo, quando a
reconquistei era sincero, não pensava abandoná-la depois. Enfim... Todas as interpretações são
possíveis. Continuando... O 4 de Fevereiro estoirou então. Estava na organização clandestina e
consegui passar para o Congo. Leli entretanto procurava-me, tentando recuperar-me. Ela fugiu
de Luanda em Abril. Tentava chegar ao Congo. Foi apanhada pela UPA e assassinada. Não sei
se te disse que era mestiça...
— Quer dizer que...
— Não o digas! Fui o causador da sua morte, não é isso que ias dizer? Sim, fui o
causador da sua morte. Involuntário, mas que importa? Leli viva não me conseguiu
reconquistar. Mas a sua vingança foi a sua morte. Ligou-me fatalmente a ela, num sentimento
que não é de maneira nenhuma o amor, mas que me amarrou. Hoje não posso amar nenhuma
mulher, pelo medo de lhe fazer mal. Quando me interesso por alguém, zás!, há um vidro a
separar-me dela, é o medo de voltar a sentir o que senti ao saber da morte de Leli. Matar não
custa, Comissário. Não é nada matar na guerra!
O Comissário mediu as palavras.
— Isso passará quando encontrares uma mulher à altura.
— Encontrei tantas! Parti em 1962 para a Europa. Aí conheci tanta estudante, dormi
com tanta estudante! Em 64 voltei para a luta. Encontrei tanta miúda! Não, há qualquer coisa
que se quebrou com Leli. Talvez tenha endurecido demasiado, o certo é que há uma barreira.
Eis a história. Eu fico com as marcas, mas tu podes ficar com a experiência. Por isso te vou dar
os ensinamentos que dela tirei.
O Comissário aprovou com a cabeça, silenciosamente.
— Compreendi, em primeiro lugar, que o verdadeiro homem, aquele que não pode ser
dominado, é o que pode calar a paixão para seguir friamente um plano. Todo o sentimento
irracionaliza e, por isso, incapacita para a ação. Que todo o dominador é em parte dominado, é

mayombe (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora