Acabas de chegar, de entrar na guerrilha, pensou Sem Medo. Com que direito falas
como se já tivesses aguentado inúmeras vicissitudes? Ainda nem viste a verdadeira guerra e já és
capaz de dizer que resistirás mais do que eu. Estes jovens vêm todos da Europa com a ideia que
o estudo teórico do marxismo é uma poção mágica que os fará ser perfeitos na prática. No
entanto, é um tipo que é capaz de falar de frente ao seu Comandante, o que é uma boa base
para começar; o resto virá talvez depois, com o tempo, com os pontapés que apanhar da vida.
— Penso que é como a religião – disse Sem Medo. – Há uns que necessitam dela. Há
uns que precisam crer na generosidade abstrata da humanidade abstrata, para poderem
prosseguir um caminho duro como é o caminho revolucionário. Considero que ou são fracos
ou são espíritos jovens, que ainda não viram verdadeiramente a vida. Os fracos abandonam só
porque o seu ideal cai por terra, ao verem um dirigente enganar um militante. Os outros
temperam-se, tornando-se mais relativos, menos exigentes. Ou então mantêm a fé acesa. Estes
morrem felizes embora talvez inúteis. Mas há homens que não precisam de ter uma fé para
suportarem os sacrifícios; são aqueles que, racionalmente, em perfeita independência,
escolheram esse caminho, sabendo bem que o objetivo só será atingido em metade, mas que
isso já significa um progresso imenso. É evidente que estes têm também um ideal, todos o têm,
mas nestes o ideal não é abstrato nem irreal. Eu sei, por exemplo, que todos temos bem no
fundo de nós um lado egoísta que pretendemos esconder. Assim é o homem, pelo menos o
homem atual. Para que serviram séculos ou milénios de economia individual, senão para
construir homens egoístas? Negá-lo é fugir à verdade dura, mas real. Enfim, sei que o homem
atual é egoísta. Por isso, é necessário mostrar-lhe sempre que o pouco conquistado não chega e
que se deve prosseguir. Isso impedir-me-á de continuar? Porquê? Se eu sei isso, a frio, e mesmo
assim me decido a lutar, se pretendo ajudar esses pequenos egoístas contra os grandes egoístas
que tudo açambarcaram, então não vejo porquê haveria de desistir quando outros continuam.
Só pararei, e aí racionalmente, quando vir que a minha ação é inútil, que é gratuita, isto é, se a
Revolução for desviada dos seus objetivos fundamentais.
Lutamos deixara de seguir a discussão e fora-se embora, para o lado do rio. Os novos
guerrilheiros tinham parado as cambalhotas e esperavam o Comandante. Mundo Novo,
pensativo, não respondeu. Levantando-se, Sem Medo disse:
— Não estás de acordo? Não és obrigado a estar. Mas conversaremos depois, temos
tempo de sobra. Agora tenho que prestar atenção aqui aos meus pintainhos! E misturou-se a
eles, enquanto Mundo Novo perseguia teimosamente com o olhar as lianas que subiam até às
árvores, para daí voltarem a descer mais ao lado, tecendo o deus Mayombe de uma enorme e
emaranhada teia, que o manietava, dando-lhe o ser.
Eu, o Narrador, Sou Mundo Novo.
Recuso-me a acreditar no que diz Sem Medo. Lá está ele, ali, no meio dos jovens,
rasgando-se nas raízes da mata, rastejando, triturando os ombros contra o solo duro, putrefato
e húmido do Mayombe, enrouquecendo com os gritos e imprecações que blasfema,
emasculando-se no sémen da floresta, no sémen gerador de gigantes, suando a lama que sai da
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mayombe (Completo)
RomanceA história do livro tem como cenário Angola nos anos 70, período que marca as lutas pela independência do país. No primeiro capítulo intitulado "A Missão", os guerrilheiros no Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) chegam à selva de Mayomb...