— Não, nunca calhou.
— É isso o que eu queria dizer. Enquanto o não fizeres, quererás sempre abrir novas
frentes.
Sem Medo lançou uma gargalhada. O outro riu também.
— Freud não explica tudo.
— Mas explica muita coisa – disse o dirigente.
— É curioso!
— O quê?
— É curioso – disse Sem Medo – que estejamos para aqui a discutir Freud, quando nos
encontramos em plena confusão política, com adultério e quase revolta pelo meio. É o vício
dos intelectuais, este gosto pela conversa em qualquer circunstância.
— Não, o povo do kimbo ainda é pior. E repara que isto foi um parêntesis, estávamos
mesmo assim a tratar de assuntos atuais. Falávamos mesmo da tua transferência...
— Está absolvido, camarada responsável! Mas é coisa séria?
— Certíssima. O problema é encontrar um substituto. Claro que não é imediato, levará
bem uns três meses. Mas entretanto as coisas aqui avançarão um pouco, espero. Não vim
incumbido dessa missão, mas tu deverias ser contatado brevemente para a Direção conhecer a
tua opinião. Embora penses o contrário, há certas medidas que não tomamos sem consultar os
interessados. Quando isso é possível, evidentemente. A sugestão tinha vindo do Leste, nós aqui
devíamos dar o nosso parecer. O teu desejo será realizado, pois se precisa dum Comandante
para avançar para lá das regiões atualmente em guerra. Onde, não sei, isso é segredo militar.
Mas é para uma nova Região.
Os olhos de Sem Medo iluminaram-se. Sentiu nas narinas o vento do Planalto que
conhecera na sua juventude. Viu as vertentes imponentes da Tundavala, onde o Mundo se abria
para gerar o deserto do Namibe: a Tundavala eram as coxas entreabertas da montanha que
deixavam escorrer as areias do deserto, inundando o horizonte até à África do Sul. Sentiu o
perfume de eucalipto nas montanhas do Lépi, recordou os campos de milho do Bié e do
Huambo, as bandeiras vermelhas das acácias no Chongorói, tudo indo dar, descendo, aonde a
terra morria e os escravos do passado perdiam para sempre o seu destino. Viu Benguela, o
antigo armazém de escravos, o quintalão de engorda dos negros, como bois, esperando o barco
para a América. Lá se abria o caminho da América, mas se fechava o caminho da vida para o
homem negro. Agora, Benguela não seria o cemitério antecipado do Novo Mundo, mas a porta
aberta para o Mundo novo. Os olhos de Sem Medo desciam sensualmente pelas vertentes
escarpadas da Huíla ou pelas doces vertentes do Huambo e deleitavam se, espraiando-se no
mar, confundindo na espuma as silhuetas solitárias dos imbondeiros ou os penteados
arquitetónicos das mulheres do Planalto.
— Seria o paraíso – sussurrou.
VOCÊ ESTÁ LENDO
mayombe (Completo)
RomanceA história do livro tem como cenário Angola nos anos 70, período que marca as lutas pela independência do país. No primeiro capítulo intitulado "A Missão", os guerrilheiros no Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) chegam à selva de Mayomb...