Porque não dar-lhe uma possibilidade?
— Mas possibilidade de quê? Isso é que não compreendo!
— Pois não! Possibilidade de... sei lá! Ele é que sabe. Mas com certeza não quererá dizer,
e concordo com ele. O camarada Teoria tinha duas hipóteses: ir ou não ir. Escolheu a primeira.
Talvez mal, talvez sem muito refletir, mas escolheu. E ele é homem para não voltar atrás na sua
escolha. Se foi por teimosia ou não, isso só ele o sabe. O que sei é que os homens teimosos
são-no geralmente até ao fim, sobretudo quando há um risco. Se quer partir a cabeça, se
escolheu partir a cabeça, devemos dar-lhe a liberdade de partir a cabeça.
— Isso é liberalismo!
— Lá vens tu com os palavrões! É possível que seja liberalismo. Mas eu não sou
Comissário Político. É a ti que compete politizar-nos e defender a posição política justa.
Posso ser liberalista de vez em quando, pois tenho-te sempre como anjo-da-guarda para
me guiar.
O Comissário sorriu. Dez anos mais velho do que ele, o Comandante comportava-se
agora como um miúdo para desviar a discussão. Era claro que Sem Medo já tinha uma ideia na
cabeça.
— E tu, camarada Chefe das Operações, o que pensas? – perguntou o Comandante.
— Penso que tem razão – respondeu distraidamente o outro.
— Bem, estou em minoria – disse o Comissário. – A responsabilidade é tua,
Comandante. Espero que não suceda nada.
— Mais uma ou menos uma responsabilidade! – disse Sem Medo.
— Nada sucederá – replicou Teoria, sem saber se devia estar contente ou não: não se
perguntara.
O Chefe de Operações adormeceu. Teoria foi deitar-se. Em breve acordariam com a
chuva miudinha que primeiro só molharia a copa das árvores e começaria a cair das folhas
quando já tivesse parado de chover. Tal é o Mayombe, que pode retardar a vontade da
Natureza.
O professor pouco dormiu. A perna molhada doía-lhe atrozmente. Para que insistira? A
sua participação não modificaria em nada as coisas. Sabia que não era um guerrilheiro
excepcional, nem mesmo um bom guerrilheiro. Mas insistira.
Era o seu segredo. Da mesma maneira que impusera ao Comando a obrigatoriedade de
ele fazer guarda como os outros guerrilheiros, embora o seu posto de professor da Base o
libertasse dessa tarefa. Teoria era mestiço e hoje já ninguém parecia reparar nisso. Era o seu
segredo. Segredo doloroso, de que o Comissário se não apercebia, de que o Chefe de
Operações se não interessava. Só Sem Medo, o veterano da guerra e dos homens, adivinhara.
Sem Medo, guerrilheiro de Henda. Antes chamava-se Esfinge, ninguém sabia porquê.
Quando foi promovido a Chefe de Seção, os guerrilheiros deram-lhe o nome de Sem Medo,
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mayombe (Completo)
RomanceA história do livro tem como cenário Angola nos anos 70, período que marca as lutas pela independência do país. No primeiro capítulo intitulado "A Missão", os guerrilheiros no Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) chegam à selva de Mayomb...