O rapaz não compreendeu a alusão. Levantou para ele uns olhos límpidos, onde se lia o
temor.
— Sentaste-te sem pedir licença, como se fosse a tua cama. Quer dizer que me perdeste
o medo...
Outros guerrilheiros observavam a cena do lado de fora da janela, mas não podiam
ouvir, pois Sem Medo falara baixo. Vewê baixou os olhos, à espera duma reação violenta. Se a
familiaridade lhe é conferida pelo fato de ser meu parente, então isso é mau; se é porque
começa a sair da casca, se começa a desenvolver como feto de homem adulto, então está bem.
Qual o móbil de Vewê?
— Pensas que o fato de ser meu primo te dá direitos que os outros não se permitem ter?
— Vai haver a rádio...
— Eu sei, não é isso que pergunto – levantara a voz e os que estavam à janela aguçaram
os ouvidos. – Pergunto-te se pensas que ser primo do Comandante te faz considerar superior
aos outros.
— Não, não, camarada Comandante.
— Então, porque não pediste licença para te sentares?
Vewê hesitou. Olhou para trás do Comandante, para o grupo de espectadores que se
formara atrás da janela, sem que o Comandante os visse. Falou alto para que todos ouvissem:
— Achei normal... Como o camarada Comandante se podia sentar na minha cama sem
pedir autorização.
Sem Medo sorriu. O ar tímido de Vewê enganava: tinha caráter, começava agora a tirar
lentamente as unhas. Não era Vewê, era gato, onça, ou leopardo. Quem sabe se leão? Ia dar um
bom guerrilheiro. O Comandante bateu-lhe no ombro.
— Podes estar à vontade. Conquistaste o direito de te sentares na minha cama sem pedir
autorização. Duvido que isso conte para ti, mas enfim...
Vewê olhou para a janela. O murmúrio que percorreu os guerrilheiros fez compreender
a Sem Medo que algo se passava. Fixou Vewê e viu o olhar triunfante que lançava aos
companheiros de fora. Triunfante e tranquilizado. Sem Medo compreendeu tudo: não era
iniciativa de Vewê, fora simplesmente uma aposta que fizera com os outros.
— Vai embora! – gritou o Comandante. – Sai-me daqui, desaparece!
O rapaz olhou-o, perplexo e atemorizado.
— Sai! – gritou Sem Medo, furioso.
Vewê pôs o chapéu na cabeça e desapareceu. O Comissário falou do outro lado da casa:
— Não tens o direito de falar assim a um guerrilheiro, Comandante!
Sem Medo amachucou o cigarro no chão. Sentou-se no catre. Os olhos faiscaram, ao
fixar o Comissário. Este levantou-se e avançou para o meio da casa. Sem Medo olhava-o, o
cenho carregado.
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mayombe (Completo)
RomanceA história do livro tem como cenário Angola nos anos 70, período que marca as lutas pela independência do país. No primeiro capítulo intitulado "A Missão", os guerrilheiros no Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) chegam à selva de Mayomb...