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— É possível – disse Sem Medo. – Ou é apenas um hábito que ficou. Todos nós
pensamos na morte e isso é um problema metafísico. Mas essa linguagem exprime bem o meu
pensamento, por isso a utilizo. O que queria que tu compreendesses, e que me parece que o
Mundo Novo não percebeu no outro dia, é que não é pelo fato de eu saber que não
chegaremos ao paraíso prometido que recuarei.
— Eu sei, ele falou-me disso. Pôs essa dúvida. Respondi-lhe que não recuarás porque as
tuas razões de lutar são sinceras.
— Quais são?
— Quais são? Enfim, sei lá! São razões humanas, de crença numa necessidade de justiça,
de ódio à opressão... as mesmas que as nossas. A única divergência é no futuro. Tu és mais um
homem para esta fase da luta, recusas-te a pensar no futuro. Nós pensamos também nesse
futuro. Como te vês em Angola independente?
— Eu? Não me vejo. Simplesmente, e em toda a sinceridade, não me vejo. Isso é que
vos choca?
— Enfim, cada um tem os seus planos... Onde mais gostará de trabalhar, ou então quais
as suas ambições.
— A ti vejo-te claramente, como um quadro político. A mim, não me vejo. Talvez
noutro país em luta... Quem sabe se na cadeia? Não me vejo em Angola independente. O que
me não impede de lutar por essa independência.
— A primeira vez que te vi, não, a segunda vez, estavas num bar a beber uma cerveja.
As pessoas dançavam, as mesas estavam cheias de pares barulhentos, como são os bares
congoleses. Havia uma orquestra que tocava, num barulho infernal. Entrei com vários
camaradas, não havia mesa vaga. Num canto descobrimos-te a uma mesa, sozinho, com uma
garrafa de cerveja à frente. Contemplavas a garrafa vazia. Tudo te parecia indiferente, o barulho,
as pessoas que dançavam, as mulheres que passavam à frente da mesa, fazendo-te sinais.
Disseram-me: está ali o Sem Medo, o chefe de seção Sem Medo. Eu era novo no Movimento,
tinha chegado há pouco de Kinshasa, tinha-te visto uma vez no bureau. Compreendi então que
eras um homem só. Os outros quiseram ir ter contigo, para se sentarem à mesa vaga. Consegui
convencê-los a irmos para outro bar, a deixar-te sozinho. Nunca me esqueci dessa cena, tu a
olhares a garrafa vazia, longe, muito longe do mundo que te rodeava. És um homem só, Sem
Medo.
O Comandante aprovou com a cabeça.
— No entanto – continuou o Comissário – há uma coisa em ti, talvez a solidão, que
intimida e ao mesmo tempo leva as pessoas a serem sinceras contigo...
— Talvez a solidão...
— Achas que sim?
— Todos nós somos uns solitários – disse Sem Medo. – Os solitários do Mayombe!
Porque gostamos de viver na mata? Não é porque gostamos de nos sentir sós no meio da

mayombe (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora