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— Que vais fazer a Dolisie, João? Pela primeira vez, Sem Medo chamara-o pelo nome.
O nome que Ondina utilizava.
— Resolver esse problema.
— De que maneira?
— Sei lá!
— Não é melhor pensares um pouco, e irmos amanhã os dois?
— Preciso de vê-la, de falar com ela... Não posso decidir nada sem falar com ela.
— De acordo! Mas é melhor amanhã. Vais chegar à noite, sem Guia de Marcha. Claro
que isso não é grave, mas.. Se quiserem, podem complicar-te a vida.
— Achas que alguém me pedirá a Guia de Marcha? Todos fugirão de mim, como se eu
tivesse sarna, que é preciso evitar, pois ninguém sabe como falar a um sarnoso... Posso desertar,
posso ofender, tudo me é permitido, pois eu tenho sarna. Uma sarna que não se cura, uma
sarna que fica até à morte, como a infâmia. Corno! Eu sou um corno, compreendes? E vens tu
falar-me de pequenos aspectos formais, como Guias de Marcha... Sei que estás a procurar um
pretexto qualquer, queres reter-me na Base, tens medo que eu ande assim à noite. OK! Porque
estás com tantas curvas?
Sem Medo desviou o olhar para o caminho. Um dia, os portugueses descobririam esse
caminho que estava a ser demasiado utilizado e iriam até à Base. Os pisteiros colonialistas já
andavam à procura dele, a notícia de que a Base estava no interior já lhes chegara aos ouvidos,
pelos espias infiltrados no Congo. Talvez neste momento estivessem numa emboscada. Toda a
atenção era pouca. E o Comissário corria por esse caminho, sem reparar no leve quebrar de
galhos que faz um pé prudente.
— Não podes falar assim, não sabes o que se passou ao certo.
— A Ondina escreveu-me. Contou tudo.
— Era uma ligação permanente ou foi por acaso?
— Por acaso, uma vez. Por acaso não, isso nunca é por acaso. Se ainda gostasse dele, eu
compreenderia. Tive mesmo esse pressentimento um dia, mas foi algo de muito vago. Mas ela
diz que não gosta dele, que aconteceu... Eu não percebo, Comandante, não percebo. Faço
esforço, mas não consigo perceber.
Eu percebo, pensou Sem Medo. Mas quem pode afirmar finalmente que percebe, que
está seguro de alguma coisa?
— Parecia que ela gostava de mim, embora com certos problemas, ela mesmo na carta o
deixa entender... Nem sei. Diz que se vai embora, pede a transferência, pede perdão... Eu não
consigo compreender, Comandante. Porquê, porquê? Oh, porquê?
Sem Medo deixou-o chorar. Era tudo o que Sem Medo desejaria, era que ele chorasse.
Como um miúdo. E ele serviria de mãe e deixá-lo-ia chorar no seu colo. Passou-lhe um braço
pelo ombro. Sentiu no corpo as convulsões do corpo do Comissário e lembrou-se doutro

mayombe (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora