— Porque ele está em tudo. Os quadros do Movimento estão impregnados de
religiosidade, seja católica, seja protestante. E não são só os do Movimento. Pega em qualquer
Partido. Há uns que procuram aldrabar o padre e escondem os pecados: é como os militantes
que fogem à critica e nunca a aceitam. Há os outros, os que inventam mesmo pensamentos
impuros que afinal nem chegaram a ter, salvo no momento da confissão, para que se sintam
mesquinhos em face do sofrimento do Cristo: são os militantes sempre dispostos a autocriticar-
se, a reconhecer erros que não cometeram, apenas porque isso lhes dá a impressão de serem
bons militantes. Um Partido é uma capela. E é por isso que achas que os responsáveis devem
criticar-se a sós, como o padre e o sacristão, que só na sacristia se acusam de roubarem as
amantes respectivas, porque se o fizessem em público os crentes tornar-se-iam céticos.
— Não é a mesma coisa. Um Partido não é uma capela.
— Não deveria ser uma capela, mas é. Onde é que os dirigentes discutem em público?
Não, só no seu círculo. O militante tem de entrar no círculo, pertencer à casta, isto é, tornar-se
dirigente, para saber da roupa suja que se lava nas altas instâncias. Quando um dirigente é
publicamente criticado, é porque caiu em desgraça, é um bispo tornado herético, um Lutero.
— Então, achas que tudo se deveria fazer em frente do povo?
— Pelo menos dos guerrilheiros, dos militantes, vanguarda do povo, como se diz. Vocês
falam tanto das massas populares e querem esconder tudo ao povo.
— Vocês, quem?
— Vocês, os quadros políticos do Movimento. Os que têm uma sólida formação
marxista.
— Tu também a tens.
— Eu? – Sem Medo sorriu. – Eu sou um herético, eu sou contra a religiosidade da
política. Sou marxista? Penso que sim, conheço suficientemente o marxismo para ver que as
minhas ideias são conformes a ele. Mas não acredito numa série de coisas que se dizem ou se
impõem, em nome do marxismo. Sou pois um herético, um anarquista, um sem-Partido, um
renegado, um intelectual pequeno-burguês... Uma coisa, por exemplo, que me põe doente é a
facilidade com que vocês aplicam um rótulo a uma pessoa, só porque não tem exatamente a
mesma opinião sobre um ou outro problema.
— Porque estás sempre a dizer «vocês», a incluir-me num grupo?
— Porque fazes realmente parte dum grupo: os futuros funcionários do Partido, os
quadros superiores, que vão lançar a excomungação sobre os heréticos como eu. «Vocês»
representa todos os que não têm humor, que se tomam a sério e ostentam ares graves de
ocasião para se darem importância...
Sem Medo interrompeu-se. O Comissário esperou a continuação. Mas o Comandante
parecia ter parado de vez. Acendeu um cigarro e ficou a ver as volutas destacarem-se na noite e
perderem-se, mais alto, na escuridão do Mayombe. Muatiânvua continuava a observá-los, de
longe. Ekuikui aproximou-se dele.
VOCÊ ESTÁ LENDO
mayombe (Completo)
RomanceA história do livro tem como cenário Angola nos anos 70, período que marca as lutas pela independência do país. No primeiro capítulo intitulado "A Missão", os guerrilheiros no Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) chegam à selva de Mayomb...