O Comissário estava nervoso, e os seus olhos revelavam falta de à-vontade. Discutir
para quê? – pensou Sem Medo. Desenterrar o que já morreu. Os homens gostam de se flagelar
com o passado e nunca se sentem contentes sem o fazer. É a incapacidade de pôr uma pedra
sobre um fato e avançar para o futuro. Há outros, no entanto, os que não sabem gozar a vida,
que só veem o futuro. Incapacidade de sofrer ou gozar uma situação. Se sofrem, consolam-se,
pensando que o amanhã será melhor. Se são felizes, temperam essa felicidade pela ideia de que
ela acabará breve. Eu vivo o presente; quando faço amor, não penso nas vezes em que não
encontrei prazer, ou que será necessário lavar-me a seguir. Mas o Comissário é um miúdo, cuja
personalidade está indecisa entre o passado e o futuro. Poderá talvez aprender a gozar a vida,
mas por enquanto ainda necessita duma explicação.
— Vamos – disse Sem Medo.
Sentaram-se sobre um tronco caído, à entrada da Base, as armas nos joelhos.
Muatiânvua vira-os e não despegava os olhos dos dois vultos.
— Quero pedir-te desculpa do que se passou ontem – disse o Comissário. – Não devia
falar-te assim à frente dos guerrilheiros. É desautorizar-te e tirar a confiança dos guerrilheiros
no Comando.
— Tinhas razão, eu não devia tratar o Vewê como tratei.
— Mas não devia falar-te ali. Deveria ter-te dito isso à parte. Os guerrilheiros...
— Os guerrilheiros devem habituar-se a ouvir os responsáveis criticarem-se e verem que
isso não vai provocar problemas entre eles.
O Comissário abanou a cabeça.
— Foi um gesto impensado, está errado. As críticas devem ser feitas em reunião do
Comando ou em privado. Foi assim que sempre se disse...
— Pois aí é que está o mal – disse Sem Medo. – As coisas passam-se entre os
responsáveis. Se há roupa suja a lavar, é preciso que o militante não saiba, ela é lavada na
capelinha. Fica tudo sempre na capelinha. Como ensinas então os guerrilheiros a criticar e a ser
sinceros, e a controlarem os responsáveis, se na prática não lhes dás exemplos? Eu, quando
tenho uma coisa a dizer-te, ou ao Das Operações, não vos chamo à capela para criticar, já
reparaste? Com vocês deve ser a mesma coisa.
— Isso dizes tu! Mas os guerrilheiros já estão a falar, a dizer que há makas entre nós, que
o Comando está dividido.
— Precisamente porque tu sempre evitas fazer-me críticas públicas. Se o fizesses, já
estariam habituados e não era uma coisa destas sem importância nenhuma que os ia alertar.
— O princípio está errado! – disse o Comissário.
— Bom. Tu tens necessidade de te sentir em falta e estás a confessar-te. Enquanto não
tiveres a penitência, não tens a alma tranquila. À confissão chamas autocrítica, à contrição
chamas o reconhecimento do erro. Queres que te ordene a flagelação para expiares o sacrilégio?
— Vês em tudo o pensamento religioso!
VOCÊ ESTÁ LENDO
mayombe (Completo)
RomanceA história do livro tem como cenário Angola nos anos 70, período que marca as lutas pela independência do país. No primeiro capítulo intitulado "A Missão", os guerrilheiros no Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) chegam à selva de Mayomb...