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DIAS DEPOIS

Essa semana tá só a correria. Comecei a ver os pedreiros pra darem jeito no galpão que nós compramos. Tem muita coisa a ser feita, muitos papéis pra regularização, enfim... Quantos mais sonho, mais dinheiro gasto, mas eu também realizo.

Ontem, quarta-feira, as crianças foram com a minha mãe pro tal sítio, chegaram lá e fizeram chamada de vídeo comigo, me mostrando como era lindo. E de fato, deu até vontade de ir.

Hoje fui no centro, tive duas reuniões e uma delas foi um representante de uma loja de artigos esportivos, mais precisamente, loja de um time grande aqui do Rio. Fui bem sincera com eles, dizendo que não entendo nada de futebol, que eu preciso de intensivão, mas todo mundo me tranquilizou dizendo que eram só fotos e vídeos com os uniformes femininos, enfim...

Também fui convidada pra uma festa de influencers, na Barra da Tijuca, nem sei como fazer. Confesso que ao mesmo tempo que quero, não quero. Sou uma influenciadora completamente diferente das demais, sou cria da favela, não quero perder minha essência e ficar fazendo cena pra ninguém. Quero mostrar pras meninas de onde eu vim, que elas também podem, não precisam nascer na Zona Sul.

Cheguei na entrada do morro por volta das 17h e já senti o clima estranho, a maioria do comércio de portas fechadas, pouca criança na saída da escola. Isso me cheira a operação.

Onde eu moro, esse negócio de operação é muito raro. Os meninos tem um trato com a polícia, então, pra estourar algo, tem que acontecer alguma coisa muito forte lá na pista, a ponto de chamar atenção da mídia.

Quando entrei na principal, dois carros de polícia atravessados e tudo fechado. Eles paravam todos os carros, e nessa sim, tinha revista. Meu carro é um Tucson 2020, prata com insulfilm, e pra eles, um carro desse subindo, vocês já sabem.

A policial já veio cheia de agressividade pro meu lado, eu fui tranquila, sem me exaltar, tô no meu direito de ir e vir e comprar o carro que eu quiser. Trabalho a beça, né?

Ela pegou os documentos do carro, os meus e começou com as perguntas. Pra sorte dela, os documentos das lojas estavam numa pasta, no banco do carona. Inclusive, os meus contratos novos com as duas marcas que havia fechado hoje.

— E mora na favela? — falou com desdém.

— Nasci e fui criada aqui. Por hora, não vejo motivos pra sair.

Ela não gostou muito, devia estar doida pra fazer o dinheirinho dela. Em plena semana santa, comprar aquele chocolate pra família, né?! Mas se fodeu, a mãe aqui é braba. Só anda no certo.

Quando eu estava entrando no carro, ouço uma voz familiar e possivelmente, alguém dizer meu nome. Tentando disfarçar ao máximo, olho pra trás e quem era? O Lucas.

Na mesma hora, ele veio na minha direção, cara fechada, fuzil atravessado no peito e fez sinal pra mais dois policiais virem junto com ele.

— Queremos revistar seu carro.

— Oi? Por qual motivo?

— Todos os carros estão sendo revistados. Você não é diferente de ninguém. — fez sinal pros caras. — Pente fino aí.

Minha vontade era matar esse filho da puta, primeiro porque eu sabia que aquilo era puro ego, segundo porque ele tá com uma cara de policial corrupto que merece uma coça.

Permaneci plena, olhando enquanto eles vasculhavam meu carro com lanterna, cachorro, papagaio, periquito, enfim...

— Tudo correto, senhor.

— Certeza?

— Positivo.

Não falei mais nada, entrei no carro e ele ficou parado próximo à porta, com um sorrisinho ridículo no canto da boca.

— Deu sorte, hein. Tu acha que eu não lembro do seu maridinho não?

— Tá tão atualizado que nem marido é mais. — apertei o botão pra fechar o vidro e segui em direção à minha casa.

Tudo estava fechado. Lá em cima, só tinha eu me aventurando na rua. Eu estava tão puta com o ocorrido que ainda não tinha pensado no Henrique. Quando entrei em casa e vi o celular dele, a chave da moto e a roupa que ele dormiu dobrada em cima da cama, eu pirei.

Liguei pra Angel e nada. Liguei pra Rafaela, nada também. Ninguém me atendia... Comecei a andar pela casa, fazendo exercícios de respiração pra não surtar ainda mais, até que fui olhar nos fakes do Twitter, e lá tinha uma possível explicação pra operação.

Pelo que meu cérebro ansioso e em pânico me deixou entender, era que 5 rapazes moradores daqui, estavam praticando pequenos delitos no bairro vizinho, só que, um dele matou um cara, que reagiu ao 157. A polícia pegou e ele disse de onde vinha...

Ou seja, isso é básico. Tem acordo? Não pode deixar os moleques vacilaram na pista. Vacilou, os cana sobe na vontade pra fazer bonito pra televisão.

Eu tentei mais uma vez a Rafaela, atendeu no segundo toque.

📱Rafaela📱

"Oi irmã."
"Oi, como tá aí?"
"Rato tá na toca. Ninhada no vizinho"
"Entendi. Previsão de quando nasce?"
"Enquanto durar. 3 a 7 dias."
"O que? Sem mexer?"
"Sem mexer, sem falar."
"Ai meu Deus!"
"Respira e fica calma, só vai correr se alguém mexer antes da hora. Qualquer coisa vem pra cá."
"Tá bom. Dá um beijo no meu afilhado."
"Dou sim. Nós te amamos."

FIM DA LIGAÇÃO

Rafaela e eu inventamos alguns códigos há muito tempo atrás, quando aqui tinha um monte de operação, então, até hoje, nos momentos de tensão. Nós usamos.

Tentei relaxar, mas passei o resto do dia no meu quarto. Que inferno viver isso!

Amanda já estava sabendo e eu pedi pra ela não deixar que ninguém mais lá soubesse e, caso eu tivesse notícias, falaria pra ela.

O resto da minha noite foi resumida em notícias por esses fakes, orações, promessas e muito choro. E acabei fazendo uma coisa que não fazia há muito tempo: ir dormir chorando.

Nisso tudo, só consegui agradecer pelo fato da minha família não estar aqui. Essa viagem foi feita na melhor época possível.

Ninguém merece a incerteza, ninguém merece não saber se quem a gente ama vai voltar pra casa. E o pior de tudo, é pensar que se a pessoa não voltar, ela nem tem certeza que você a ama, já que você não verbalizou.

META
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