Capítulo 1: O Livro (IV)

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Von conhecia o suficiente do bosque para não se meter nas áreas mais perigosas e para conseguir sair; nada além disso. Depois de passar por um trecho mais inclinado aquela parte da universidade se tornava uma planície-labirinto, as árvores todas iguais, o horizonte bloqueado pelas folhas pequenas que se espalhavam em todas as direções. Era por aquele lado mesmo? Tentou procurar por Lena, mas só de pensar nisso seu coração acelerou. Art teria a encontrado num instante. Desde os primeiros dias, quando os quatro ainda não entendiam perfeitamente o peso do que tinham nas mãos, Art sempre fora o melhor naquilo. Mas agora Von estava sozinho, e perdido.

Quando o Livro vier...

O Livro; Lena estaria com o Livro. Era só encontrá-lo e encontraria Lena. Von sentia a presença dele. Seguiu aquele rastro perturbador e logo viu-se num espaço aberto circular, só os tocos para lembrar que um dia o lugar fora tão cheio de árvores quanto o resto.

— Oi Von. Se perdeu? — Lena riu baixinho, doce e sagaz, uma malvadeza infantil demais para ser assustadora. Desde quando ela falava assim com ele? Não costumava arriscar chateá-lo com troças.

— Eu estive ocupado — respondeu Von, suspirando. Lena estava igual: a única coisa mais escura que as roupas o cabelo, a única coisa mais clara que os olhos a pele. Continuava pequena, de longe a mais baixa do grupo, esguia e sorridente. A forma como sorria era um pouco perturbadora... ou não? Estava só projetando algo num sorriso inocente?

— Está aqui? — ele disse, mal olhando para ela. Von sabia que o Livro estava ali: era inegável. Podia praticamente cheirá-lo, aquele odor de velho mas não podre, como se tivesse sido guardado muito bem por muito tempo. Olhou para os lados e não viu nada.

— Ali, naquele toco.

Se Von estivesse menos ansioso teria erguido uma sobrancelha e desafiado Lena, tentando descobrir o que ela queria com aquela brincadeira idiota. Tinha olhado os tocos antes. Para a surpresa da garota, entretanto, ele se virou sem palavra.

Em cima de um dos tocos estava o embrulho que Trevor levou à biblioteca, horas antes.

— Como você...

— Eu que fiz — ela disse, o sorriso infantil crescendo, parecendo uma criança orgulhosa. — Este toco na sua frente é agora o melhor lugar em todo o campus para esconder o que quer que seja. A não ser que quem colocou o objeto ali fale algo, todo o mundo vai ignorar ele.

— Ah, isso... — Von engoliu em seco, pensando nas outras coisas que Lena já fizera. Esfregou o rosto, falando sem entusiasmo. — É bem impressionante.

Ele caminhou em direção ao toco e sentou-se no chão, apoiando as costas num dos outros restos de árvore. Penteou o cabelo com a mão, e depois esfregou os olhos. O sorriso desapareceu da face de Lena, e ela agarrou uma das alças da regata, olhando para o chão.

— Aconteceu alguma coisa com você, Von? Você tá bem?

Von arregalou os olhos.

Conhecia Lena desde que ela tinha oito anos. Via-a quieta, sorrindo e falando baixo, sempre ao mesmo tempo parte integral do grupo e em sua margem, uma presença comum e confortável, embora passiva. Lena nunca perguntava. Falar diretamente não era de seu feitio. Mas será? Ela era ao mesmo tempo uma de suas amigas mais próximas e uma das pessoas que menos entendia no mundo. Estaria a garota só crescendo e saindo da adolescência fechada, ou... tinha a ver com ele e Art, com...

Helena. Eu preciso te contar uma coisa.

Ensaiara as palavras mil vezes dentro da própria cabeça, no começo solitário de suas férias. Precisava contar. Precisava entender o que tinha acontecido, e consertar qualquer problema. Era o certo. O justo. Então por que as palavras não saíam? Sentia a garganta travada, um espasmo incontrolável de desconforto toda a vez que pensava que conseguiria começar aquela conversa. Tentava pensar nos Picos. No que fora no final, a serenidade, a superação. Naquele estado conseguiria falar com ela. Mas desde que retornara era só o Von de novo, quase tão estúpido.

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