— Eu acho que a gente devia dar o Livro pro Rocan — disse Trevor, e suas palavras preencheram toda a biblioteca. Art e Von deixaram-nas voar, cada vez mais leves, até serem gradativamente cobertas pelo silêncio implacável.
Que dia era hoje? Art não saberia dizer. Qualquer um que fosse, ninguém apareceria na biblioteca da universidade depois das onze horas. Quando que Rocan os deixou, foi unânime a decisão de sair do bosque.
— E os corpos? O que fazemos com eles? — perguntara Trevor, ainda no clarão dos tocos, coberto de cadáveres e parcialmente em chamas, e Von respondeu com um aceno displicente de mão.
A casa do lago era longe demais, e discutir aquele tipo de coisa na casa de alguém pareceu arriscado... A terceira opção veio naturalmente: a mesa da biblioteca, onde eles se reuniam todos os dias letivos, principalmente em momentos de estresse. E a situação atual era só um pouco mais estressante do que uma prova de final de semestre. Só um pouco.
Art abriu a fechadura enferrujada da biblioteca com o truque que Von usara no apartamento de Seh dois (três? Quatro? Dez?) dias atrás, mas, quando se virou para ver a reação do colega, encontrou-o desligando as câmeras das redondezas, indiferente. A coisa estava séria demais para esse tipo de jogo. Art engoliu em seco.
Os filmes de samurai ensinaram Art bem: todos os anos de doutrinação da batalha solidificaram seus princípios na cabeça dele. "Não hesite ante à morte de seu oponente." E ele não hesitou. Nem na primeira, nem na segunda, nem na oitava. Esmagou mentes como se fossem bolhas de sabão, e teria continuado a fazê-lo se não tivesse perdido a consciência. Afagou sutilmente o curativo no braço, já quente com o sangue fresco, e se concentrou um pouco mais em aumentar o metabolismo. Deveria ter previsto que Von veria através de seus truques. Era pra estar agradecido: estava vivo graças a isso. Teve a mente mais uma vez invadida pela imagem dos corpos, e fez força para preenchê-la com outras coisas. Teria tempo para lamentar a morte de seus ideais adolescentes mais tarde.
— O que vocês acham? — repetiu Trevor, sentado em seu lugar usual na mesa do grupo de estudos.
Art achava muitas coisas, e a maioria delas ainda o surpreendia. Trevor o surpreendia. Teve que segurar um tremor da raiva quando Von contou a ele sobre as aulas de Seh. Por que o Trevor? O Von eu infelizmente entendo, ele tem jeito pra coisa... mas o Trevor? Por que o Seh não me escolheu?
Não tinha como saber quão hábil era Trevor, mas imaginou que estava em algum lugar entre Lena e Alesia. Talvez acima de Lena. Era difícil dizer, e, pensando bem, ele não se importava muito. Só queria entender como Trevor tinha achado e escondido o Livro, o que fez melhor até do que Lena. Era uma peça importante, seria bom saber onde estava... Pensou em entrar na cabeça do amigo e tirar essa informação dele, mas...
Trevor ainda era seu amigo. Não era, bom, educado invadir os outros assim. Mas qual o problema? O que tenho a perder com os dois pensando menos de mim? Era um pensamento recorrente desde que retornou dos Picos, mas algumas coisas ele ainda não conseguia fazer. E ter um pingo da confiança de Von ainda era útil.
— Não concordo — disse Von. — Eu sei lá, é difícil confiar nesse Rocan.
— "Difícil"? Esse é o seu melhor argumento? — rebateu Trevor.
— Não seja inocente, Trevor, qual é. Ou você acha que é só dar o Livro pra ele e tudo se resolve? — Ele riu, o autêntico riso de Von que nem precisava das próximas palavras para ser explicado. — Tamos fodidos de qualquer forma. Se o Rocan não pegar o Livro a tal Presença vem e sei lá, explode a cidade até achar ele. E se o Rocan tava falando a verdade, entregar o Livro pros Mantos vai dar na mesma. Mas se entregarmos o Livro pro Rocan ele provavelmente vai tentar apagar a gente pra não deixar rastro, e mesmo que não faça isso a Presença pode nos torturar por informação... — Ele riu mais uma vez, penteando o cabelo com as mãos, olhos arregalados. — Tamos mortos de qualquer forma.
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Princípios do Nada
Mystery / ThrillerE se a vida pudesse ser tão interessante quanto você achava que seria quando criança? E se todas as histórias que você imaginava, as aventuras, os poderes, a grandeza que você esperava para si... E se tudo isso fosse de novo verdade, tão real que ch...