Capítulo 4: Viagem de Negócios (VIII)

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Houve um momento de silêncio depois que Von saiu da cozinha. Ele comeu às pressas, claramente com a cabeça em outro lugar, e a única vez que abriu a boca para fazer algo diferente de enfiar mais uma garfada nela foi para elogiar a culinária de Lena. Ele e Art passaram um dia inteiro sem uma comer, e quase desmaiaram de fome. "Na próxima vamos pensar melhor nessa história", dissera Art, se arrastando para a cozinha. A casa do lago tinha bastante comida, alguns enlatados e os suprimentos que as garotas trouxeram na véspera, e Lena fez um tipo de macarrão com carne estranhamente gostoso. Ela corou com os elogios, balbuciando algo como sempre ajudara Cella na cozinha.

Art demorou mais a comer, e depois que Von se foi (arrastando consigo Lena) ele se levantou, cambaleando até a pia para refazer a atadura. Enquanto os três se preparavam para a "viagem", ele cautelosamente enrolara um pedaço de pano no braço, agora totalmente encharcado. Era vermelho escuro, rubro, tão escuro que parecia até não natural.

— Obrigado por não contar pra eles — disse ele, espremendo o pano. Seu braço esquerdo tremia um pouco, mas parecia funcionar. Sangue frio escorreu pelo ralo — E por ter colocado a bacia do meu lado. Achei que o fluxo seria menor.

— Você deveria contar. Pelo menos pro Von — disse Alesia, indo sorrateiramente até a sala para pegar a bacia, que estava cheia até a metade. Ela tinha achado que Lena notaria, mas aparente subestimara a sugestão de Art.

— Por que pro Von? — Ele terminou de torcer o pano e enrolou-o novamente no braço. Alesia foi ao seu lado e despejou o conteúdo da bacia na pia. Mais sangue do que ela já tinha visto na vida, empesteando a cozinha com o fedor. Alesia quis que a sugestão de Art ainda a afetasse, só para conseguir ignorar aquele cheiro.

— Porque ele nunca sofreu a Consequência. Acho que isso vai dar um pouco mais de escrúpulo pra ele. A jogada das lâmpadas foi pesada, não foi? Ele já tinha teleportado no mundo real antes?

— Não num lugar tão público, acho. — Art se sentou. Alesia quase perguntou como andava seu ferimento, mas já sabia a resposta: "sob controle". Ele continuou: — O Von não é estúpido. Se ninguém ver ele teleportando, nada de ruim vai acontecer.

Alesia encarou o amigo enquanto ele engolia, sem muito entusiasmo, os restos da comida. Nunca admitiria, mas ela via: Art admirava o feito de Von. Era simples, eficaz, ousado e eficiente. Ele parecia procurar alguma coisa para criticar, mas não achava.

— Como que aconteceu com você, então? — perguntou Alesia. — O que você fez?

— Eu te expliquei, eu exagerei. — Art desviou os olhos, mas logo percebeu e voltou a ficar sério e casual. Ele tá mentindo, será?, pensou Alesia. Por que mentiria? — Eu mesmo não tive fé suficiente no que eu tava fazendo, lá no apartamento do Henderson. Forcei a barra. Não vai acontecer de novo.

Os quatro ainda não sabiam o que fazer. Ficar na casa do lago era uma boa ideia? O grupo da capital sabia onde ficava, embora demorariam algumas horas para chegar ali. Da cozinha, Art e Alesia ouviam a voz de Von pela casa, protegendo as paredes e as janelas, e os passos rápidos de Lena atrás.

— Escuta, Alesia — começou Art —, o que você quis dizer quando perguntou se o Von já tinha teleportado "no mundo real"?

— Ah. — Alesia mordeu o lábio. Que vacilo, hein? Não dava mais pra esconder. — O Von me contou.

— Contou o... — Os olhos de Art se arregalaram com a compreensão, mas ele logo segurou a expressão de surpresa. — O que exatamente ele te contou?

— Eu sei tudo. Os Picos, o avião. — Ela baixou os olhos. — O vermelho e negro, as torres... Tudo.

Art reclinou-se na cadeira e deixou o ar escapar por uma fresta na boca, preenchendo a cozinha com o som. Ele fechou os olhos, pressionando os lábios numa linha fina, depois encarou o teto, e por fim inclinou-se para a frente e olhou Alesia nos olhos.

— Você deve... me achar meio...

Ela não respondeu, e ele não continuou. Começou de novo:

— Mas você ouviu a versão dele. Você não sabe nem que ele sofreu a Consequência quando voltou.

— Sofreu???

— Sim — disse Art, a expressão séria contrastando com a surpresa de Alesia. — Foi a coisa mais horrível que eu vi em toda a minha vida. Eu não consigo nem... — Ele teve um espasmo.

— Mas como ele sobreviveu? Tem alguma parte dele sangrando e eu tô ignorando? Vocês aprenderam a escapar da Consequência também?

Art se inclinou ainda mais na direção dela, desconfortavelmente próximo, quase caindo na mesa.

— Alesia. O meu braço foi uma jogada de sorte inacreditável. Mal sei como "desviei". Quando percebi o que tava acontecendo, o quão impotente eu era... — Alesia ergueu as sobrancelhas, tentando lembrar alguma vez que Art admitira aquele tipo de fraqueza. — Eu acho que nem o Merriam viu algo como o que eu vi. Se tivesse, teria sido mais enfático com a gente. Não brinca com a Consequência, entendeu? Nunca. Nem pensa nisso. Não vale a pena.

Alesia piscou algumas vezes, olhos abertos ao máximo, enquanto Art se acalmava, voltando a medir as palavras.

— Essa era uma das coisas que eu queria te dizer... Quando te convidei pra ir conversar comigo, segunda. Acho que não temos mais tempo pra isso.

Será que ele teria me contado sobre os Picos?, ela pensou, e quase riu de sua inocência. O Art nunca teria contado. Nem se eu tivesse pedido nua...

— Por mais que a história tenha me deixado mal na fita, essa é a versão do Von. Ele sabia que podia ter estudado mais o meu diário até entender como sair dali. Podia ter se esforçado nisso, quando eu o prendi na zona de guerra. Mas ele preferiu me peitar. E se destruíssemos alguma coisa importante no nosso embate... Azar.

Art deu de ombros. Alesia sabia que era verdade.

— Não pensa que ele também não... — Art parou por um instante. — Ele me contou que matou um cara.

Alesia sentiu o corpo todo esfriar e enrijecer, como se as palavras de Art fossem um milhão de agulhas de gelo a perfurando. A cabeça doeu, e o coração apertou. Sentiu o ar saindo pela boca, mas por um momento não compreendeu o que a cercava, o mundo estranho que habitava.

Tudo que queria daquele semestre era continuar estudando, ver se consertava as coisas com os quatro, com o seu padrasto, quem sabe com Von. E a cada cinco minutos aquela simplicidade era arrancada dela cada vez mais, impossível de retornar.

— ...Vou ver como eles estão — disse Art, saindo da cozinha.

Alesia não se moveu.


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Obrigado pela leitura! E este foi o capítulo 4! Mas antes de sabermos o que vai acontecer com os quatro na casa do lago, mais um interlúdio: as Férias de Von. Afinal, será que ele realmente matou alguém? Enquanto Art estava tendo o carro explodido, o que Von esteve fazendo? A primeira parte será postada nesta segunda-feira, não perca!
E, como sempre, se você curtiu, deixe um comentário! Se quiser conhecer mais do meu trabalho de escrita, dá uma olhada no meu site, o http://oucoisaparecida.com.br/

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