Capítulo 6: O Aviso de Rocan (IV)

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Com algumas rugas a mais, um afundar levíssimo n os olhos e os dentes um pouco tortos, Von seria idêntico a Rocan. O jovem ficou aturdido, sem compreender se olhava para algum tipo de espelho. Rocan encarou-o sem surpresa, como se já esperasse aquilo.

Trevor olhava para Von e para Rocan, em pânico. Von não se movia, preso nos olhos e no nariz, na curva do maxilar e nas bochechas ossudas. É só uma coincidência, pensou.

Rocan permaneceu calado, mirando Von. Trevor engoliu em seco antes de falar:

— Está aqui, Rocan. Quem você queria ver — ele disse, mais alto do que o necessário. Toda a praça certamente ouviria: todas dezenas de árvores, as milhares de pedras que faziam o chão, a dúzia de bancos velhos de madeira e as três pombas que bicavam. Os carros passavam em bom número pelas quatro ruas que cercavam a área verde, e nenhum deles dava atenção aos três.

— Estou vendo — disse Rocan, dando um passo hesitante à frente. — Sou Rocan. Posso saber seu nome?

Seh lhes dissera que aquela coisa de nomes era, usando seu próprio termo, "balela". Todos os livros e histórias que atestavam o poder dos nomes eram só história, usada para assustar e impressionar. Falava muito sobre como um nome só teria poder se você deixasse.

E, depois do que ouviram de Merriam, os quatro deixavam. Depois de Merriam os apelidos que arranjaram tornaram-se ainda mais seus nomes.

— Von.

— Você é uma criança de quem? — disse Rocan. Qualquer mínima mudança em sua entonação teria feito a fala soar arrogante, mas, dita daquela forma, foi só curiosa.

— Merriam.

— Besteira. — Rocan deu mais alguns passos na direção deles. — Merriam da capital, você diz? Vi ele de longe, uma vez. Se era capaz de fazer algo tão complexo quanto o que você fez com o Livro, nas armadilhas, nunca passou muito disso, e não ensinaria tudo que sabia para alguém. Tinha bom senso.

— Bom — disse Von, dando de ombros —, essa é a verdade. Mas não é a única. Recebi um empurrão de um amigo... Lerseh.

O rosto de Rocan comprimiu-se, tenso como uma passa.

— Nunca ouvi falar.

Von deu de ombros, e sorriu.

— Trevor disse que você queria conversar — disse ele, tentando ficar sério. — Sobre o Livro.

Rocan olhou para trás, como se quisesse se sentar, mas já estava a alguns passos do banco. Von, percebendo isso, agiu rápido. Puxou três bancos, arrastando-os pelas pedras até ficarem logo atrás deles. Está escuro demais para os carros verem, pensou, com razão.

Rocan arregalou um pouco os olhos, alisando o sobretudo antes de sentar em seu banco. Ele limpou a garganta enquanto os dois se sentavam, preparando-se para falar.

— Eu não sei como esse Livro foi parar nas mãos de vocês, e acho que nem vocês sabem. Já pararam para pensar nisso? Não foram os Mantos da Capital, eu lhe garanto. E nem a Presença. Pode ter sido um dos grupos de fora, dos outros continentes, mas duvido muito disso. Você tem ideia de quem trouxe esse Livro até aqui?

— Você só me faz perguntas — disse Von, suando frio. — Não acha que deveria me dizer logo o que quer?

Rocan sorriu, esticando o corpo.

— Você é franco como poucos de nós são. — Von prestou especial atenção ao "nós". Rocan não tinha feito nada que entregasse suas habilidades, mas não deixava dúvida de que não era mole. — E, por isso, serei franco também.

Trevor corria os olhos entre os dois, em silêncio. Rocan continuou:

— Os Mantos da Capital não poderão protegê-los, ou proteger a cidade, do que está vindo. A Presença cairá aqui com peso. E, quando fizer isso, vai sobrar pouco deste lugar. — Rocan assumiu um olhar sério. — Eu já vi acontecer algumas vezes. O Livro pode estar escondido, mas, enquanto estiver por aqui, nada está seguro. Os Grão-Mestres não têm limites, e nem empatia. E, pelo que vi desse Livro... — Von viu as pupilas de Rocan dilatarem-se levemente, e os olhos desfocarem, fora dali. — Ele justifica muito esforço.

— Tô morrendo de medo — disse Von, ao mesmo tempo colocando enorme ironia na voz e sendo dolorosamente sincero. — Se os Mantos não podem nos proteger, o que você sugere?

— Deem o Livro para mim.

Von soltou uma risada curta, abafada, irônica.

— E como isso muda a situação? Eu não podia dar só o Livro pra tal Presença e resolver tudo?

Rocan ponderou, penteando o cabelo com a mão de uma forma desajeitada, errada.

— Imagine que você acha um de seus livros cheio de formigas andando nele. O que você faria?

Trevor não respirava, mas Von não deu folga:

— Então o que muda entre você e os Mantos?

— Estamos sendo francos, não estamos?

Von acenou.

— Então lhe digo. Se vocês me derem o Livro a Presença não fará nada com vocês porque ela tem medo de mim.

Von encarou profundamente os olhos escuros de Rocan, uma cópia dos seus. Lembrou-se do que Trevor mencionara há pouco: o método de Seh para identificar sinceridade. Sentiu a inquietação de Trevor ao seu lado, e impressionou-se na forma como Rocan não cedia ao seu olhar. Estava sério. Falava sério.

— Quando você acha que eles virão? — disse Von, desistindo.

— Quando perceberem que a coisa é séria. Quando perceberem que o grupo que enviaram à procura do Livro não voltará.

— Hã?

— Eles mandaram um grupo de peões para pegar o Livro. — Ah, então realmente não tinham sido os Mantos, Von pensou. — Mandaram um, e, depois que ele desmaiou por causa das suas armadilhas, devem ter mandado mais meia dúzia.

Von se levantou num salto.

— Merda! Por que você não disse antes?

Rocan fez uma expressão de dúvida, franzindo o cenho.

— Você não confia que seu colega dê conta de uns dois iniciados?

— Não com o braço machucado.

Antes que qualquer um deles pudesse se manifestar, Von saltou por cima de um dos bancos, coberto pela sombra das árvores, e desapareceu.


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