Rocan

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Rocan retomou a visão, mas não o fôlego. Não tinha mais pulmões. A única parte do corpo que sentia eram os olhos, isso e pequenos pedaços da cabeça; o resto era só uma lembrança. Não que isso fosse totalmente incomum ao homem.

Entre todas as coisas que se arrependia, uma delas era certamente ter continuado com um corpo físico tão primário. Se tivesse sido menos arrogante e feito o mesmo que os outros, as coisas teriam sido diferentes. Mas, se tivesse sido menos arrogante, nunca teria chegado naquela situação.

A cratera abaixo era a maior coisa que ele já vira. Era grande o suficiente para comportar, muito provavelmente, toda a lua. Se aquilo não fosse consertado logo, causaria problemas em todo o sistema solar. Uma pena. O palácio da Presença era uma visão tão única...

Mas ao mesmo tempo era uma idiotice sem tamanho. Se havia uma coisa que Rocan não se arrependia, era em apontar a pequenice dos seus... Companheiros? Amigos? Essas palavras eram fracas demais. Inadequadas demais. Depois do que aconteceu com Callíope, uma das percepções que ele voltou a notar foi a do tempo. Há quanto tempo estavam juntos, os oito que resistiram à guerra? Tempo se torna uma noção inútil quando a sua passagem parece não ter efeito sobre você, quando você pode condensá-lo ou acelerá-lo dentro da própria mente... Quando você simplesmente não liga.

Está acabado — anunciou Erm.

Os quatro que restaram pairavam abaixo dele, cercando-o num quadrado imenso. Flutuando bem no centro da cratera, quilômetros acima, estava Rocan. Ou, pelo menos, o que restara dele. O corpo fora estilhaçado, vaporizado, exilado. O homem via as manchas de sangue com o canto do olho, no que restava do nariz, nas bochechas, nos lábios. Se estivesse com a cabeça intacta, refaria o corpo em instantes. Mas esse não era exatamente o caso; ar passava por dentro de seu crânio. Os lobos do cérebro estavam pouco acima, separados, sem sinal da carapaça óssea que outrora os conteve. Mas, de novo, aquilo não passaria de um aborrecimento se ele estivesse com a mente livre. O que não era o caso. Os quatro bloqueavam-no de todas as formas concebíveis, prendendo sua fé, segurando sua força de vontade, de forma que a única coisa que ele conseguia fazer era sobreviver.

— Se há uma coisa que eu nunca vou entender sobre a existência, é o que te levou a fazer isso — continuou Erm, o único em condições de segurar Rocan e falar ao mesmo tempo. Os outros três que restaram dividiam os esforços entre contê-lo e reparar as mentes. Pela percepção limitada de Rocan, notou que pelo menos um deles sobrevivia só como consciência, sem corpo físico. O próprio Rocan faria isso, livraria-se do cérebro e daria o fora dali, mas se desviasse um mínimo de seu poder para fazer isso os outros o esmagariam.

Você era o mais poderoso de nós — disse Erm, num tom que, para qualquer um que não tivesse convivido com ele por milênios, teria soado completamente sem emoção. Mas Rocan percebeu a decepção, o orgulho ferido, o desgosto. — Mas não era poderoso a ponto de derrotar nós sete.

Só três, pensou Rocan. Um erro brutal de cálculo, mas de qualquer forma um feito impressionante. Erm ficou em silêncio por um momento, talvez por ter encontrado alguma dificuldade em reparar o corpo, talvez tentando mais uma vez ver algum sentido nas próximas palavras:

E tudo por causa de... Uma mulher.

Rocan também não entendia. Era só uma mulher. Uma garota. Podia ser bonita, podia ser inteligente, mas, por tudo, ele era mais do que um homem. Vivera mais e conhecera mais mulheres do que a maioria dos homens que já pisaram na terra juntos. Desde antes da guerra, nunca acontecera algo assim com ele. Livrara-se de todas as emoções animalescas, controlara todas as vontades inúteis que insistiam em surgir na mente dos macacos. Impressionara-se com ela enganando-o, com a forma como arrancou seu corpo, mas também se impressionava ao ver formigas trabalhando. E, ainda assim, quando tirou dela suas armas e colocou-a de joelhos... Callíope sorriu.

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