Férias de Art (I)

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Art gostava do ronco do motor de seu velho carro, o último presente que ganhara dos pais antes de se tornar "independente", "um adulto", mas percebeu que o som ainda era muito parecido com o silêncio. O toca fitas emperrou duas horas depois que ele se pôs na estrada, e então houve só o motor e o vento. Era uma viagem longa para se fazer de uma vez só, mas não se sentiu à vontade para parar em nenhum lugar. Tinha só duas semanas de férias; precisava fazê-las valerem. A chuva veio e passou, e só conseguia pensar em como estava sozinho.

Não falou com ninguém. Simplesmente foi.

Teria convidado Lena para ir com ele, mas achou que seria ruim. Não conseguiria olhá-la sem se lembrar dos Picos, e pensar em como possivelmente tinha estragado algo dentro dela. Pensou em falar com Alesia, mas ela não iria. Ela perceberia o convite, e daria um jeito de se esquivar dele. E, se milagrosamente ela fosse, em algum ponto surgiria uma tensão que Art não se sentia confortável em lidar. Talvez Seh fosse boa companhia, mas ele não entenderia a quietude que viria. Certamente viria. Trevor falaria demais, e Art não teria paciência pra isso. Tornaram-se menos próximos depois da faculdade. Ao final, o único que seria boa companhia era Tom. Falaria pouco, compreenderia o silêncio, e passaria aquela segurança que sempre o envolvia. Talvez fosse um pouco quieto demais, mas era melhor do que nada.

Mas não melhor do que Von. Meses antes eles já começaram a planejar a viagem daquelas férias, e deleitaram-se com a onda de ideias idiotas e juvenis que tiveram. Passaram uma noite no bosque da universidade bebendo cerveja barata e discutindo, rindo tão alto que os cachorros que tentavam dormir afastaram-se deles. Von falava em ir para o sul, assistir os jogos interuniversitários e tentar a sorte com as possíveis dez mil garotas que se reuniriam lá. Poderiam visitar a região mais elevada e quem sabe até ver um pouco de neve, fazer um castelo e retomar todos os sonhos infantis que foram tirados deles por morarem numa região relativamente quente. Art disse que poderiam ir para norte, acampar em algum campo isolado e acordar todos os dias com o sol, aprender a surfar... Quem sabe achassem alguma praia só pra eles, e então poderiam fazer dela o que quisessem. A essa ideia Von sorriu, mas não de verdade.

Von tentava segurar a natureza deles. Fora das reuniões dos quatro, falava pouco sobre Merriam e o que faziam, e presumivelmente até fazia pouco. O primeiro incidente na casa do lago, quando Alesia foi embora, mexeu com ele. Art, preso nas próprias maquinações, demorou a perceber o quanto.

Mas ignorar a natureza deles era fútil. Nada do que fizessem, fora talvez apagar as próprias mentes, iria levá-los de volta para o passado onde eram moles e felizes.

De certa forma acabaram fazendo o que Art queria. Foram até um lugar isolado, e fizeram dele o que queriam. Mas depois tudo ficou mais cinza, e as decisões mais difíceis de entender...

Art sacudiu a cabeça, mantendo os olhos firmemente abertos, e chegou à conclusão de que era uma boa hora para ligar o farol. Perdeu-se meia dúzia de vezes no caminho, sem seu navegador de confiança, mas agora estava quase em seu destino. Sentia-o na estrada, que começava a ser invadida pelos diversos prédios das cidades-satélites, pelo asfalto pior, e pelo movimento.

É claro que Von não iria com ele. Não depois dos Picos; do que fez e o que faria... Mal conseguia se lembrar de seus planos. E essa era uma mentira pouco elaborada que contava para si: sabia exatamente o que queria. Não se deu ao trabalho de chamar Von. Ele encararia o convite com descrença, acharia que era mais algum plano terrível.

Art segurou o volante de couro com força, fazendo-o gemer sob as mãos. Pela primeira vez em horas encontrou trânsito, e encarou aquilo, corretamente, como um marco da chegada. À sua volta os prédios cresceram, e, mesmo de noite, viu várias pessoas na rua, falando alto e caminhando sem medo. Passou por vários pequenos bares ao pé dos grandes prédios, alguns cheios da juventude vívida e outros da amarga idade, e não quis entrar em nenhum.

Não tinha feito planos para aquela viagem. Primeiro pensou em ir a algum lugar isolado, ver se encontrava paz e algum bom lugar para praticar, mas a ideia o deixou desgostoso. Não precisava de mais prática solitária. Precisava entender como usar seu conhecimento num ambiente cercado de gente e sua fé, e precisava conhecer mais como ele. Este último era o principal motivo que o fez ir até a capital: conhecer mais como ele. Não era uma cidade tão grande quanto se podia imaginar, mas era a capital do país, e tinha seu bom milhão de habitantes. Um deles — pelo menos um — tinha que entender a realidade como ele. Tinha que ter algo a ensinar.

Encostou numa ruela vazia, ao lado de uma placa meio apagada de um hotel, e saiu do carro. Os bares movimentados já eram só memória, seu som residual mal passando pelas esquinas. As calçadas eram cheias de parafernália: uma banca de jornal antiga, toda fechada com sua armadura de aço; latas de lixo desbotadas, todas cheias, amontoadas num canto; buracos grandes em cercas de madeira, de onde saiu um homem brandindo uma faca.

— Se você gritar eu te furo.

Art tinha uma mão na porta do carro, ainda aberta, e outra na mala. Fitou o homem, incrédulo, sem reação. Aquilo era de verdade? Estava acontecendo com ele?

O homem estendeu a outra mão.

— Carteira e chave do carro.

Art não se moveu. Como... como o homem poderia fazer aquilo com ele? O que tinha na cabeça? Não...

— Agora! — chiou o assaltante, o mais alto que conseguiu sem gritar. Estavam a menos de dez passos da entrada do hotel, de onde escapava uma luz amarelada e vozes baixas.

Aquela situação era tão estranha, tão idiota. Sentia-se como se um garoto de cinco anos estivesse lhe ameaçando com um pirulito. Art suspirou, repreendendo a criança que via no homem.

O assaltante congelou no lugar.

— Cara, você... — começou Art, mas nem teve forças para continuar. O pensamento não seria absorvido por aquele homem mole. Ele tirou a faca da mão do assaltante, que não ofereceu resistência alguma, e colocou a mão em seu ombro. — Vai dar um abraço na sua mãe, e pede desculpas pra ela. Depois aparece aqui amanhã de manhã, eu te dou uma bela nota de dez se você der uma limpada no meu carro.

O homem acenou com a cabeça, os olhos arregalados e assustados, e virou-se sem palavra. Art observou-o até ele virar uma esquina e sumir, e depois baixou os olhos para a faca. Era suja e velha, suas manchas marrons provavelmente abrigando um belo tétano. Tentou desfazê-la, transformá-la em pó, em ar, no que quer que fosse: e não conseguiu. Tentou com mais afinco, e sentiu um pequeno mal-estar. Já sentira isso meia dúzia de vezes antes, e nunca levara a sério antes do episódio com Von.

Consequência.

Tremeu pelo corpo todo, sentindo seu jantar querendo voltar. Jogou a faca na primeira lata de lixo que viu e entrou no hotel.


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