Capítulo 2: Amigos (VII)

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O ronco do motor era rivalizado com a chuva, que castigava o ônibus branco com punhos d'água. O veículo estava lotado de pessoas encharcadas, infelizes e silenciosas. Nada se via através das janelas, e o motorista ignorou as primeiras paradas. Era uma noite onde assumir que não haveria ninguém esperando provava-se, vez após vez, correto. Só dois homens estavam de pé no ônibus: um mais alto, vestindo uma camiseta branca sem graça, e outro encolhido, com uma jaqueta preta e um capuz.

— Você acha que o Livro tá mesmo seguro, com o que você e a Lena fizeram? — perguntou Art.

— Sim.

Von tinha mais a dizer, mas se conteve. Podia dizer que visitou o toco com o Livro naquela madrugada, tentando quebrar seus próprios métodos. Podia dizer até que tirou o Livro do embrulho algumas vezes. Mas ninguém precisava saber disso.

Art acenou, aprovando.

O que aquele aceno queria dizer? Art confiava nele tanto assim? Era um assunto sério demais para ser tratado só com antiga confiança e um "sim" baixo. Estaria lendo a mente dele? Quais truques teria nas mangas? Von ardia por dentro.

Art virou-se displicentemente para a janela, ignorando o fato de que não se via nada fora borrões amarelos além dela. Von encarou-o intensamente. Onde estivera nas férias? Deu um jeito de continuar o que quer que estivesse planejando com aquelas torres? Não; Von não queria saber. Não valia a pena. Mas um lado dele queria muito entender, aquela ponta de esperança dizendo que foi só algo do momento, uma loucura causada pelas circunstâncias... Que agora que os dois estavam de volta as coisas voltariam a ser como eram... Mas não podiam, nunca seriam. Não depois do que aconteceu. E mesmo com toda essa certeza, a curiosidade ainda o tentava. Mas não podia simplesmente perguntar, podia?

— Onde você esteve nas férias? — perguntou Art, virando-se lentamente, uma mão ainda segurando o tubo no teto do ônibus.

Von piscou, sério. Estava de sacanagem com ele? Estava brincando, mostrando sua superioridade? Fazendo-o cozinhar por dentro, tentando entender o quão bom ele havia se tornado?

— Eu fui pro Sul — respondeu Von, temporariamente derrotado. — Pras montanhas. — Deu um segundo para deixar claro que havia terminado. — E você?

— Fui à capital.

A capital era o último lugar que Von esperava. Era cheia, movimentada, caótica... Lotada demais para testar algo, longe demais de alguma área isolada como o lago, e poluída... Difícil de ver. Art abriu a boca novamente, e Von tirou tudo da mente, prestando atenção.

— Encontrei um livro parecido com o que temos em mãos. Mais simples, menos perigoso... mas interessante, útil.

Von surpreendeu-se com a honestidade. O que Art ganhava contando aquilo a ele? Será que as coisas tinham voltado ao normal? Não acreditava nisso o suficiente para fazer a pergunta que flutuou entre os dois o caminho todo.

Deveríamos tentar ler o Livro? Para Von, a resposta era óbvia. Mal sabia o que fazer com o que tinha, o que faria com mais? Era uma lógica sólida, mas ao mesmo tempo falha. Ele sabia que precisava dar uma olhada no Livro. Na primeira chance que tivesse, quando ninguém estivesse olhando, faria isso. É uma questão de me proteger, ele pensava, lembrando-se das férias. Quando o Livro vier...

Até agora não entendia como Art não havia disparado atrás do Livro. Quem sabe a segunda neblina causou nele o mesmo efeito que a primeira causou em Von. De qualquer forma, não estava pronto para falar disso ainda, talvez temendo que Art o convencesse que era uma boa ideia eles irem estudá-lo juntos. Preferiu continuar no assunto seguro:

Princípios do NadaOnde histórias criam vida. Descubra agora